Por Ricardo J.A. Leme
É possível ser livre de tudo que se tem e, também, por incrível que pareça, ser escravo de tudo que não se tem. Posso ser possuído pelo que não possuo!
Ter e Ser, duas dimensões que eventualmente se tocam, apenas se tocam. Ser humano ou ter humano, qual o estado em que você se encontra?
Eu sou!
Ter é estado claro aos cinco sentidos, mas ilusório ao tempo. O tempo flui e ensina que tudo relacionado ao ter sofre degaste. Ou seja, ter implica em criar vínculos com o tempo. Ter é temporário, não é bom nem ruim, temporário apenas. Aqueles que entendem a passagem terrena baseada na leitura de princípio e fim, são de algum modo reféns ou comparsas do tempo. Temos tempo? Quanto tempo de vida terei? Quando tinha sua idade… Se eu tivesse escolhido diferente… Quando eu crescer… Quando eu me aposentar… Enfim, nuances de expressão de teres humanos, humanos que passam.
Ter um nome, uma cidade onde se reside, um bairro, uma profissão, uma família, propriedades e afins, não me define enquanto ser! São apêndices circunstanciais da essencialidade do ser.
Ser mãe ou ter um filho não soa como realidades distintas a você?
A maternidade é experiência única a ilustrar com clareza a tensão que reside entre ser e ter. Conheço mães que nunca geraram filhos. Há mulheres que não tiveram filhos e têm o dom da maternagem, que é o cuidar. Também conheço mulheres que geraram filhos e nunca alcançaram o status de mães. Percebe a diferença? É sutil e grosseira simultaneamente.
O ser é inefável e se manifesta em presente e presença que não passa, permanece. Ele é uma veste do eterno e da eternidade, sem princípio ou fim, quando *eles descem à terra, esse maravilhoso espaço onde os sentidos imperam. Mas, se os sentidos me permitem ter experiências, dificultam que eu seja; enquanto sou, fluo, passo, me solto, comungo o mundo à minha volta, não me sinto apegado ao que sinto, visto que não tenho a experiência, senão sou a própria! Ora, sendo a experiência, ela acontece em mim, assim como simultaneamente eu aconteço nela, **ela me aprende enquanto eu a aprendo.
Confuso? Não se fores ser! Mas se a opção foi pelo ter, talvez esteja estranhando. ***São as entranhas que estranham.
Ser não é superior ao ter, apesar de maior. Ser é apenas diferente. Ter, são os dois lados da moeda, ser é a moeda. O ser é vertical, é antigravitacional e aspira, já o ter é horizontal e inspira, moldado pela gravidade. Pela gravidade do que tive, do que tenho e do que terei e pelo desespero do que poderia ter tido e do que poderia ter sido. Tudo se torna grave quando o ter asfixia o ser. Uma gravidade que força o corpo a se curvar fisicamente em reverência à terra, pois que a alma se recusou a reverenciá-la e assim ser liberta.
O ter humano é biológico, tem DNA, mapa celular, tem predisposição; o ser humano é biográfico, tem mapa celeste, é campo de possibilidades.
Ter não é menos que ser, senão diferente, aliás a própria diferença. Agora, problema é não se saber enquanto ser humano ou ter humano, aí sim é o princípio do equívoco na aventura da vida, que é temporal para o ter e atemporal ao Ser.
Assim sendo, quem sabe na próxima, se a vida permitir, possamos pensar juntos como sermos humanos?
* O eterno e a eternidade: quando eles descem à terra – uma metáfora do tempo presente.
** Perceba que aprender é solto, mais leve e sugere uma experiência de SER e TRANSFORMAR-SE. Quando aprendo algo deixo de ser, ou renovo meu ser. Quando apreendo algo aumento meu ser. Sutilezas que geralmente passam despercebidas, não é mesmo? De qualquer modo deixo aqui minhas desculpas pela liberdade poética.
*** É nas entranhas e no profundo de nosso ser que habitam nossos saberes mais consolidados, mais entranhados. A pessoa que vive ancorada no modo ter, tem as entranhas endurecidas, aprende por acúmulo, construindo torres. Alimentos novos podem causar estranheza, devido ao costume habitual de alimentos e informações formatados. Informações que a pessoa está habituada. A pessoa que vive no modo ser é livre e com entranhas porosas e desobstruídas a novos saberes, pensares e possibilidades de trocas. O modo ser minimiza a sensação de estranhamento comum ao modo ter. Mais uma vez me desculpo pela liberdade poética que entendo às vezes transcende o rigor e a formatação da prosa.