Alcoolismo: será que realmente me recuperei?

Alcoolismo: entenda por que o cérebro está sempre pronto para voltar ao padrão de consumo anterior, mesmo após muitos anos de abstinência

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“Larguei o álcool há 13 anos. Mas sempre me faço uma pergunta: será que estou realmente recuperado? Ou será que tenho um tubarão adormecido dentro de mim? Há como saber ou vou morrer sem ter essa resposta? Se puderem me esclarecer essa dúvida eu agradeço.”

Resposta: Considerando que você já tenha apresentado um quadro de Síndrome de Dependência de álcool no passado, é extremamente provável que você não esteja “curado ou plenamente recuperado” mas sim “com um quadro em remissão completa”.

Considerando desta forma, ou seja, um quadro prévio caracterizado por consumo recorrente de bebidas alcoólicas, com prejuízos sociais, familiares, escolares, laborais devido a esse consumo, com prévia evidência de tolerância, com dificuldades para cessar o consumo, com necessidade de grande tempo para recuperar-se dos efeitos da mesma, e com perda do controle sobre o consumo, você provavelmente teve um quadro de Síndrome de Dependência atualmente em remissão completa. Tendo deixado de beber há 13 anos, você merece ser congratulado por tal conquista.

A Síndrome de Dependência de Álcool é uma doença crônica e tratável. Todavia, ela tem origens genéticas e a substância provoca alterações neurobiológicas e de funcionamento cerebral que sempre o acompanharão.

Geneticamente, variações em genes no cromossomo 12 que controlam ALDH (enzima aldeído desidrogenase) e genes no cromossomo 4 relacionados ao ADH (enzima álcool desidrogenase) podem diminuir o risco de alcoolismo. Um segundo mecanismo geneticamente relevante no aumento do risco de problemas relacionados com o uso de bebidas alcoólicas envolve genes que afetam a impulsividade, a busca de sensações e a desinibição, sendo aqueles que codificam os receptores GABAA (Receptores para o Ácido Gama-Amino-Butírico A) e CHRM2 (Receptores Colinérgicos Muscarínicos tipo 2).

Efeitos do consumo recorrente de álcool

O desenvolvimento da dependência de bebidas alcoólicas é um processo bastante complexo e dinâmico

Com o consumo recorrente, o álcool tem efeitos proeminentes em quase todos os sistemas neuroquímicos cerebrais, com ações opostas durante a intoxicação versus abstinência. Talvez os efeitos mais potentes sejam nos receptores do ácido Gama-Amino-Butírico (GABA) no cérebro, especialmente no receptor GABA-A (GABAA), contribuindo para as propriedades sedativas, indutoras do sono e relaxantes musculares do álcool. O etanol também afeta os receptores ionofóricos controlados pelo principal neurotransmissor excitatório do cérebro, o chamado glutamato, especialmente os receptores para o neurotransmissor N-Metil-d-Aspartato (NMDA), com efeito estimulante atenuado durante a intoxicação mas muito aumentado durante a abstinência.

O consumo do álcool aumenta agudamente a dopamina e seus metabólitos, e o consumo crônico altera os números e a sensibilidade dos receptores de dopamina, com efeitos relacionados à intoxicação e ao desejo, em parte por meio de mudanças nos centros de prazer na área tegmental ventral do cérebro. O consumo de bebidas alcoólicas também aumenta a serotonina nas sinapses e regula os receptores de serotonina. Níveis mais baixos de serotonina no cérebro podem estar associados a uma resposta menos intensa ao álcool e ao consumo de mais álcool por ocasião. Finalmente, nesta breve resposta, o álcool aumenta agudamente o funcionamento dos sistemas cerebrais relacionados aos opióides e afeta os receptores de adenosina, acetilcolina e canabinóide 1 (CB1).

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Dependência de álcool é multifatorial

Como se vê, o desenvolvimento da Síndrome de Dependência de Álcool é um processo bastante complexo e dinâmico. Muitos fatores neurobiológicos e ambientais influenciam a motivação para beber. Em uma dada situação na qual o indivíduo está diante da possibilidade de voltar a beber novamente, ele, de forma automática ou mesmo reflexiva, sobrepesará os efeitos prazerosos e reforçadores do uso (tais como a euforia e redução da ansiedade) com os efeitos adversos do uso e a possibilidade de retorno ao quadro passado.

As memórias associadas tanto com os efeitos recompensadores quanto com os efeitos deletérios, regadas aos estímulos ambientais presentes, influenciarão a tomada da decisão e a tentativa de evitar.

Indivíduos com história de problemas com o uso de bebidas alcoólicas estão mais propensos a ceder aos estímulos apontados acima do que bebedores regulares não problemáticos. De fato, regiões cerebrais de pessoas com história de uso problemático de álcool, tais como córtex cingulado anterior, núcleo accumbens esquerdo e córtex órbito-frontal esquerdo, são mais amiúde ativadas, quando na presença dos estímulos relacionados com o álcool.

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De fato, a região cerebral conhecida como núcleo accumbens tem recebido considerável atenção como um dos principais substratos neurais que medeia o processo de recompensa cerebral. Esta região recebe projeções dopaminérgicas, quando diante dos estímulos para beber.

O giro cingulado tem sido associado com a saliência das informações motivacionais e emocionais recebidas do meio externo. Desta forma, pode ter um papel na intermediação entre o estímulo recebido e as expectativas positivas do usuário diante do consumo de bebidas alcoólicas. Alguns autores têm sugerido que esta região cerebral está associada com a expectativa individual pelo prazer ou hedonismo.

O córtex órbito-frontal está envolvido no processamento das informações sobre estímulos reforçadores e aversivos, tendo extensivas associações com as estruturas límbicas subcorticais (circuitaria da recompensa cerebral). Disfunções nesta região estão correlacionados com prejuízo no controle inibitório, o que significa continuado uso de substâncias apesar das consequências nocivas.

Cérebro está sempre pronto para voltar ao padrão de consumo anterior

Novamente, considerando um prévio consumo problemático de bebidas alcoólicas, o seu cérebro foi modificado em termos neurais e neurobiológicos e está pronto para retornar ao padrão de consumo prévio: basta voltar a beber.

Sim, você tem um “tubarão”. Todavia, durante 13 anos, você conseguiu sossegá-lo. Continue fazendo isso. Basta não beber. Boa sorte e parabéns!!!

Atenção!
Esta resposta (texto) não substitui uma consulta ou acompanhamento de um médico psiquiatra e não se caracteriza como sendo um atendimento.

Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Professor de Psiquiatria do Centro Universitário Faculdade de Medicina do ABC. Pesquisador nas áreas de Dependências Químicas, Transtornos da Sexualidade e Clínica Forense.