“Será é imbatível. Acho que tudo o que a gente vai falar na vida está naquela música.” Renato Russo (1988)
“Tire suas mãos de mim/Eu não pertenço a você/Não é me dominando assim/Que você vai me entender/Eu posso estar sozinho/Mas eu sei muito bem aonde estou/Você pode até duvidar/É só que isso não é amor”. Com essa estrofe começa a canção Será, primeira do álbum de estreia da Legião Urbana.
O trecho se aproxima da fala, atualizando-se a cada enunciação, como palavras que se dirigem diretamente ao ouvinte, como um personagem que desafia: não quer ser preso em uma “definição”.
Definir é por fim, limitar seu sentido, pondo cercas naquilo que o outro é, tomando posse sobre sua existência. Essa aproximação de quem toma posse, de quem quer dominar o outro, é repelida e colocada em dúvida: o que será esse desejo de ter o outro como quem possui e domina sua existência?
Essa dúvida atravessa a canção e move quem ouve e quem ama. A pessoa amada não quer ser “definida” e quando parece ser fácil descrever o outro, perdemos o interesse. A maioria das pessoas nem nos interessa tanto ao ponto de tentar investigar mais sobre “quem são”, nos contentamos com algum clichê, tipificamos com lugares-comuns, são redundantes. Quem se nega a cair nesse jogo nos instiga, cria interesse, faz com que busquemos “mais”.
Do “eu” para o “nós”
As interrogações são tanto sobre o interesse que a banda pode causar, quanto sobre a capacidade do ouvinte de se interessar: mas o que era um “eu” afastando um “outro” que queria dominar, de repente se torna um “nós” e a pergunta agora é sobre a possibilidade de “conseguir vencer”.
No ano de 1984 esse “eu coletivo” poderia se referir a luta por eleições diretas, pelo fim da ditadura militar, mas evidentemente o que se quer é deixar em aberto o sentido para quem ouve participe da construção da significação da canção, para que incorpore as palavras como suas e cante também: sejamos nós.
A sequência da letra já traz a luta comum que nos une, para criar esse amor, para vencer nosso egoísmo e os monstros que nós mesmos criamos. A profecia – sobre as ilusões, as noites de insônia e desequilíbrio, procurando uma saída, uma forma de preservar nosso coração – traz a interiorização da busca por si mesmo, que é parte da democratização do gênio romântico através da cultura popular: neste caso, a Odisseia da criação do “eu”, inventa também um “nós” (uma nação, um amor etc.).
A dúvida não pode ser superada, estamos nela. Não há ninguém que possa nos dar todas as respostas e proteger, os deuses se afastaram e nos deixaram sós. É inevitável falhar e inventar novos erros, mas seremos nós, “eu e você”, cúmplices dessa aventura de buscar sentido para existência? Será que essa busca é o amor? Conseguiremos nos “inventar” com sucesso?
You wanna be me yeah
You wanna be me
Sex Pistols