Por Maria do Céu Formiga
Penso que posso escrever qualquer coisa habitada no coração. Sempre haverá um lugar propício para o que dele vier. Sempre haverá uma expressão que o apresente, seja por lábios sonoros, seja pela vagueza dos olhos ou mesmo por mãos desentrelaçadas, saudosas, que ainda não viveram o intervalo da decantação para as ausências sem despedidas.
O coração tem sempre algo a dizer, e as palavras, quando bem-intencionadas, tem sempre estrada anunciada para apresentar o amor como essência do que é divino, do que traz a vida, confissão de sentido. Pensar em excesso rouba preciosidades. O gesto que não cochilou na razão não invalida o cálice colocado intencionalmente sobre a mesa, nem a fundura do sublime.
Pensa demais quem tem medo da tragédia das imperfeições, quem precisa garantir a plenitude do bom olhar do outro sobre si, quem pouco ama, quem pouco foi amado. O olhar da feição segue cerzindo o puído da alma. Olhar que traz o sono e, sobre as feridas, as casquinhas.
Amor e perdão
É melhor pecar por excesso do que por escassez. Melhor amar demais no seu sentido mais nobre, sentido que se mistura tão perfeitamente ao perdão que não se deixa saber onde começa um, onde termina o outro. Melhor, de fato, é o amor inocente, aquele que mata a sede com a água que se bebe da concha da mão.
Melhor mesmo é a singeleza. A ternura das entrelinhas andarilhas, que nasce no coração, sai dele e passeia pelo cansaço das horas, dança sobre o outro, retorna imprevisível e, assim, propicia o ciclo. Eterno retorno.
Não se envelhece temerariamente quando se é recordado. Enquanto promovo a existência do outro em mim, minhas folhas vão ficando verdinhas, só constato depois pelas pétalas espalhadas… perfume nos jardins.
Tenho imprescindíveis amigos do peito. Eles sabem disso, sem dúvida alguma. Acho que nasci assim, cheia de calor e cachos, gostando de gostar. Com certeza herdei… inclinação nitidamente genética. Minha família sempre teve essa fisionomia.
O representante do afeto e o ateliê
Meu pai foi um bom representante do afeto que sai pouco disfarçado. Lembro-me bem do seu singelo ateliê de sapatos artesanais que ficava no fundo do quintal. Lembro-me mais ainda do quanto era bom estar sentada a seu lado num banquinho, ora mexendo naquela gaveta cheia de repartições e pregos, ora lustrando solas naquelas turbinas de crina de cavalo, ora escrevendo palavras pequenas no avesso dos pedacinhos de couro que ele, de propósito, fazia cair de suas mãos para as minhas…
Ao ateliê chegávamos juntos como nos melhores capítulos das fábulas infantis e, enquanto o rádio em volume confortável tocava jingle da Hora do Trabuco, com toda a indignação de Vicente Leporace, meu pai, para cobrir os arroubos desesperançados do locutor, contava histórias dos filmes a que assistia. Deus do céu, cada história! Eu ouvia atenta porque ele falava com tanto entusiasmo que não deixava suspeita de que aquele canto da vida era o máximo (talvez o melhor). Eu só tinha cinco anos… a beleza das imagens era só o que eu queria…fantasia… e como queria!
Dos filmes sobrou a crítica ao movimento neorrealismo italiano e a paixão pela nouvelle vague, bem como seu olhar para as dores existenciais de seus personagens, tão reais quanto eu e meu pai. Dos retalhos, sobrou o gosto pelas pequenas palavras… um talento…minha poesia. O cinema permeou nossa história, como um romance permeia a razão com pequenos intervalos de insensatez.
Como no contemporâneo “A Vida é Bela”, todo santo domingo, de bicicleta, íamos comprar pastéis no centro da cidade. Ele de chapéu e bigode fazendo curvas; eu, de trança e laize rosa, fazendo infância. Comprávamos para todos da casa, e, na volta, a garupa era para o pacote de pastéis bem embrulhados. No cano da frente, sentadinha de lado, recostada no peito de meu pai, eu voava sentindo o vento atrevido na testa, traçando novos atalhos, enquanto ele assobiava e assobiava, jazzisticamente, trilhas inesquecíveis, cuja missão, sei muito bem, é só recordar ou reeditar o encantado, quando, para redigir novos enredos, a alma suplica um tanto a mais de fôlego.
O tempo passou, perdi a conta das viagens que fiz com meu Hamphrey Bogart… Dele sobrou, além do chapéu, aquele olhar que brota verde em galhos secos e insinua que a vida não pára no peito de quem vai embora, simplesmente modifica a maneira de ficar…