por Monica Aiub
Quando descrevemos a metodologia terapêutica utilizada em filosofia clínica (clique aqui), afirmamos que os procedimentos clínicos são encaminhados de acordo com os dados coletados na pesquisa feita a partir da historicidade da pessoa.
Assim, alguns leitores poderiam imaginar uma pessoa contando sua história de vida, ordenada e cronologicamente, formulada em um discurso lógico racional bem estruturado, completo – com começo, meio e fim –, elaborado com termos claros e precisos, unívocos, ou seja, um trabalho que se passa no âmbito lógico-racional.
A pessoa imaginada poderia até, falar sobre emoções, derramar algumas lágrimas ou esboçar sorrisos, gargalhar talvez. Mas tudo isso seria claramente compreendido pelo filósofo clínico, pois seria acompanhado de um discurso racional perfeito. Se não o fosse, seria “corrigido” pelo filósofo. Este teria o papel de acompanhar o raciocínio do partilhante (paciente), apontando os “erros lógicos”, os “raciocínios sofismáticos”, as falhas no argumento. Poderia também apontar a ausência de motivos suficientes para se adotar uma crença, ou para se tomar uma decisão.
É isto o que acontece nos consultórios de filosofia clínica? Não necessariamente. Há pessoas que, de fato, contam suas histórias com discursos logicamente bem elaborados, claros, precisos. Mas nem sempre é assim. Em boa parte dos casos – como já apontaram filósofos como Wittgenstein, Searle, Strawson, entre outros – o discurso informal não é formulado segundo as regras da lógica e da gramática. Assim sendo, nem sempre é possível – e na maioria das vezes não o é – tratar a fala do partilhante considerando a correção das construções lógico-linguísticas.
Investigações filosóficas
Outra dificuldade, também já apontada por Wittgenstein no livro Investigações Filosóficas, diz respeito ao significado dos termos e expressões. Segundo ele, o significado das palavras encontra-se no uso. Estabelecemos jogos de linguagem com regras específicas em cada contexto. Assim, para significar a fala do partilhante, o filósofo clínico necessita, antes, conhecer as regras do jogo de linguagem utilizado. Para tal, a análise do discurso, assim como a pesquisa sobre o significado dos termos utilizados para compô-lo, é de fundamental importância.
Enquanto a pessoa conta sua história, são observados os termos e cada um dos contextos nos quais aparecem. Os termos mais utilizados, os termos relativos ao Assunto (Imediato ou Último), ainda que pareçam ter seus significados apresentados de forma clara, devem ser pesquisados. A pesquisa inclui também os termos utilizados em contextos inusitados, em sentidos específicos, e termos que pareçam conter contradições. Esse procedimento de pesquisa é denominado enraizamentos e consiste numa pesquisa epistemológica pela origem e pelo significado de cada termo para o partilhante.
Durante os enraizamentos também são observados os padrões das Categorias, Tópicos e Submodos, os choque existentes, as interações tópicas. Em outras palavras, o filósofo clínico observa como se dá o movimento existencial da pessoa, através de uma análise de seu discurso.
Em alguns casos, trata-se, como apontado acima, de identificar problemas advindos de uma má formulação dos raciocínios e/ou argumentos. A partir desta identificação, provocar novas formas de ordenação das ideias, questionando o modo como são encadeadas. Mas na maior parte dos casos, não se trata de apontar erros lógicos, mas de encontrar formas para lidar com as questões da vida. Assim, muitas vezes, ao invés de buscar a correção lógica segundo um modelo formal, o filósofo clínico precisará conhecer a maneira como a pessoa organiza e encadeia suas ideias.
Filosofia das lógicas
Susan Haack, no livro Filosofia das Lógicas, explica que um sistema formal é uma maneira de representar os argumentos informais, de modo a permitir sua validação. Contudo, mostra-nos diferentes sistemas formais a partir dos quais é possível avaliar um argumento informal. Em seu estudo, lista quinze diferentes sistemas lógicos, classificados entre as lógicas: tradicional, clássica, ampliadas, alternativas e indutivas.
Considerando apenas a lógica clássica, que respeita os princípios de identidade, não contradição e terceiro excluído, Susan Haack analisa um mesmo argumento fazendo uso do sistema de cálculo sentencial bivalente e cálculo de predicados. Apesar dos sistemas citados respeitarem os mesmos princípios e serem classificados como lógica clássica, num sistema o argumento é válido e no outro não. Com isso ela nos provoca a pensar que a validação de um argumento depende do sistema formal utilizado.
Diante do exposto, fica explícito porque não é o caso do filósofo clínico avaliar e validar ou não um argumento segundo um sistema formal previamente determinado. Seu papel é, ao contrário, observar o sistema de validação utilizado pela pessoa, e os resultados advindos de tal sistema, diante dos contextos vividos e das necessidades apresentadas.
É preciso destacar, ainda, que uma mesma pessoa pode fazer uso de diferentes sistemas formais para tratar diferentes questões, ou para tratar a mesma questão em diferentes contextos ou condições, ou ainda, sob o impacto de alguns tópicos, alterar o sistema formal utilizado.
É muito comum, nas instâncias sociais, elegermos determinadas formas como sendo as mais adequadas. Muitas vezes, não apenas as mais adequadas, mas as únicas válidas, corretas. Em grande parte das vezes a eleição é feita a partir de um padrão dominante, ou seja, consideramos correto pensar da forma como pensamos.
Quando nos deparamos com alguém que pensa diferente, que possui uma estrutura lógico-formal distinta daquela à qual estamos habituados, não compreendemos, não aceitamos, julgamos, imediatamente, que estamos certos e o outro errado. Tentamos, por vezes, adequar, corrigir a estrutura do outro, buscando formas de encaixar seu discurso no padrão pré-estabelecido por nós. Quando não conseguimos, a reação costumeira é a exclusão. Se você pensa diferente, está errado, é incompreensível, ou é louco.
Mas qual o critério para considerarmos algumas formas de raciocínio mais adequadas que outras? Não estaríamos considerando adequada uma forma apenas por ser ela a que escolhemos para nós, ou porque crescemos aprendendo ser a única possível?
Pensamento e flexibilidade
Muitas vezes nosso engano, nosso erro, é fruto de uma estrutura lógica a partir da qual pensamos o mundo. Se não questionamos nossas formas de pensar, se não nos dispomos a experimentar outras formas, podemos permanecer no erro, no engano, sem que consigamos nos dar conta dele. Por outro lado, o fixar-se numa única e mesma forma poderá limitar nossa possibilidade de compreensão do mundo.
Você já observou as formas como organiza e encadeia seus pensamentos? Já se deparou com alguém cujas formas de pensar são completamente distintas das suas? O que aconteceu?
Ao pesquisar os jogos de linguagem utilizados pelo partilhante, o filósofo clínico observa não somente o significado das palavras em cada contexto, mas também as regras lógicas de elaboração da linguagem. As diferentes lógicas utilizadas por cada um, em cada diferente situação. Não se trata de escolher a melhor forma, a mais perfeita, mas de fazer uso de todas as formas possíveis para aquela singularidade.
Referências Bibliográficas:
HAACK, Susan. Filosofia das Lógicas. São Paulo: UNESP, 2002.
SEARLE, J. Expressão e Significado. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
STRAWSON, P. Análise e Metafísica. São Paulo: Discurso, 2002.
WITTGENSTEIN. L. Investigações Filosóficas. Petrópolis: Vozes, 2005.