por Paulo Annunziata Lopes – psicólogo componente do NPPI
“O celular começou a ser inventado em 1918…”
Entre o ano de 1966 e 1968, Batman (interpretado por Adam West) e Robin (por Burt Ward) passou na TV americana. Os tempos eram outros e o que evidencia isso, de forma gritante até, é que o ator Adam West estava claramente fora de forma para qualquer super-herói – pelos menos para os super-heróis que apareceram na TV a partir da década de 80.
Falando da televisão, vamos a um breve histórico: na década de 1840, vários cientistas começaram a estudar a viabilidade de realizar a transmissão de imagens para grande distâncias. Em 1842, um escocês conseguiu enviar telegraficamente uma imagem. Daí seguiram-se avanços importantes de inventores de diversas nacionalidades: o sueco Jons Jacob Berzelius, no início do séc. XIX e o britânico Willoughby Smith, em 1873. Em 1884 o alemão Paul Nipkow inventou um disco capaz de fracionar uma imagem em elementos que podiam ser reorganizados para sua transmissão.
No fim do século XIX outros cientistas desenvolveram os tubos de raios catódicos. Em 1920, o escocês John L. Bard montou um dos primeiros modelos de TV de que se tem notícia. A partir daí, esse equipamento foi aprimorado. Em 1923, o russo Wladmir Zworykin desenvolveu um tubo de imagem chamado iconoscópio e a empresa norte-americana RCA o contratou para produzir o Orticon, a primeira televisão fabricada em escala industrial.
Na década de 1930, a televisão já havia sido aprimorada e ganhou viabilidade comercial. E em março de 1935, os alemães realizam a primeira transmissão televisiva. A TV foi amplamente utilizada na divulgação do regime nazista de Adolf Hitler, mais de cem anos após os primeiros estudos relacionados à criação da tecnologia. No exterior a transmissão de imagens coloridas foi alcançada em 1954.
Portanto, a TV demorou mais de cem anos para ser inventada. É claro que se decompusermos os nossos aparelhos eletrônicos e estudarmos a história dos elementos de cada peça, podemos chegar tão longe quanto a invenção da ferramenta pelos nossos ancestrais. Os mais de cem anos da TV são um recorte histórico que eu escolhi fazer para fins de comparação.
A partir daqui, serei mais sucinto para não causar nos leitores sonolência ou mesmo vontade de ligar a TV.
Quando foi inventado o celular?
Ele começou a ser inventado há muito tempo, em 1918 em linhas de trens, os progressos que se seguiram envolveram vários países, mas foi com o Motorola DynaTAC 8000X de 1973 que a tecnologia tornou-se viável. O Dynatac tinha 25 centímetros de comprimento, 7 de largura e pesava um quilo. O celular entrou de fato em operação em 1979, no Japão e na Suécia. Podemos dizer sem sombra de dúvida, de lá pra cá, que ele mudou muito, certo? E em muito menos tempo. Sem delongas: o celular, que começou como um simples telefone móvel, incorporou em aproximados quatro décadas a televisão. E o rádio. E o relógio. E o rádio-relógio. E a câmera fotográfica. E a filmadora. E o correio. E muitas vezes, o correio-elegante. E a agência bancária. E o guia 4Rodas. E o jogo de tabuleiro, o baralho e o videogame. E a moça da previsão do tempo. E o jornal impresso. E o bloquinho de recados. Também a caneta e o caderno. E mesmo partes do nosso corpo, como o braço, que a gente esticava pra chamar a atenção do taxista até tempos recentes. Batman e Robin, de 1966, morreriam por um desses. E nem precisaria ser o iPhone 6.
Recorro agora a duas experiências pessoais, esperando que ao final da leitura o leitor entenda o caminho tortuoso que adotei no presente texto.
Em 11 de março de 1999 houve o “apagão”, como ficou conhecido o blecaute que atingiu 70% do território brasileiro e partes do território paraguaio, que durou quase 4 horas. Eu tinha 22 anos e morava com meu irmão e com meu pai, no 17º andar de um edifício com uma vista privilegiada, donde se via grande parte da zona sul de São Paulo. Nunca vou me esquecer do breu, total e irrestrito, a não ser por um outdoor do Citybank no topo de um prédio comercial. Porém, o que mais me marcou foi a sensação de ansiedade pela volta da eletricidade, alimentada pela angústia de simplesmente não saber como ocupar meu tempo. Eu não queria ler sob a luz de velas, afinal eu lia o dia todo para estudar para a faculdade. Queria fazer algo mais legal, queria a TV e o computador. O que me passava pela cabeça como passatempo exigia eletricidade. Senti-me totalmente dependente. Mais do que isso, sem a TV e o noticiário não dava pra se ter notícias de quando a luz voltaria. Quase desesperador.
É desagradável para qualquer um, ver-se em uma situação de privação. Pior ainda quando não se sabe sua causa, como lidar com a situação ou mesmo quando ela vai acabar. Mas eis que o membro da família mais familiarizado com outras tecnologias entrou na sala com uma caixinha prateada na mão. Meu pai trouxe seu radinho de pilha, movido obviamente à pilha e ondas de rádio, tecnologias ditas “antigas” ou mesmo ultrapassadas. Sentamo-nos os três e ficamos escutando o noticiário, soubemos o que estava acontecendo e passamos, eu meu pai e meu irmão, um momento peculiar e gostoso em família.
Outro acontecimento que gostaria de relatar é mais recente e aconteceu em 2003, quando fui morar sozinho pela primeira vez. Quanta liberdade! Quanta autonomia! Eu decidia tudo do jeito que queria: a cor da parede, a posição dos móveis, o conteúdo da dispensa da cozinha. Porém, como acontece na vida e também no bairro do Bixiga, numa noite qualquer acabou a luz. Nada de blecaute, nada histórico. Apenas um “acabar a luz” comum, cotidiano. Pensei imediatamente: vou acender velas. Afinal, cresci vendo meus pais e avós fazendo isso quando acabava a força. Pois é, mas na minha dispensa, no meu estimado livre-arbítrio, eu não havia comprado velas. E não por esquecimento: percebi que eu nem cogitava que toda casa tem que ter velas, que ainda no século XXI você pode precisar delas. Na casa de meu pai, com certeza, as velas já deviam estar acesas.
No meu batcinto de utilidades cabia o celular, o computador, o aparelho de som, o liquidificador, o forno micro-ondas, o aparelho de barbear, mas não havia um compartimento para velas, tampouco para fósforos (meu fogão era moderno, tinha acendimento automático, dependente de eletricidade).
O presente artigo não pretende, de forma alguma, ser nostálgico. Este que vos escreve adora o smartphone, o tablet, o laptop e a TV com imagem em alta definição. Não quero viver sem eles. A questão que quero colocar é: como, então, viver com eles?
Primeiramente, sugiro verificar como está seu estoque de velas e de fósforos. Também sugiro comprar pilhas e um radinho, a não ser que você tenha, a todo momento, um celular com bateria suficiente para usar sua funcionalidade “rádio”.
Em seguida, sugiro que você remova cuidadosamente (e com um produto não abrasivo) a cola que mantém o seu smartphone grudado à sua mão, ao seu bolso ou bolsa.
O próximo passo é aprender (por exemplo nas primeiras páginas do manual de instruções) onde fica o botão que desliga seu aparelho (ou se você depende de outras funcionalidades, como, por exemplo, o relógio, há uma coisa incrível que se chama “modo avião”, que pode ser usada também fora do avião). Sou psicólogo, estudei muito para poder dizer com certeza que seu smartphone não sentirá solidão e nem se sentirá abandonado. E não se preocupe, todo smartphone vem com um botão de ligar! E ele pode ser usado a qualquer momento, veja só que coisa prática!
A questão relevante é: como você se sente quando se descola de seu smartphone?
Aliás, você já experimentou se descolar dele? O exercício não é difícil e pode começar pequeno. Você pode, por exemplo, entrar no elevador e olhar as pessoas, ver como elas são diferentes, ou como se parecem, ou como todas elas estão, provavelmente, mexendo nos seus smartphones e se escondendo do contato humano que, mesmo superficial, acontece num elevador.
Outro exercício importante é o de aumentar o intervalo no qual você entra nas redes sociais, no e-mail, no instagram etc. Você perceberá que o mundo não acaba quando você não atualiza a todo o momento o seu cérebro sobre um volume grande de informações, algumas realmente importantes e outras tantas irrelevantes.
Como foi ilustrado neste artigo, através da menção às histórias da televisão e do telefone celular, os avanços tecnológicos acontecem – desde a popularização das tecnologias da informação – num ritmo muito mais acelerado. E a maioria de nós, inclusive este que vos escreve, gosta da conveniência que a tecnologia nos traz. Mas cada nova tecnologia, embora venha com um manual de instruções, não traz consigo um manual de sobrevivência. Ou seja, a tecnologia chega até nós antes de sabermos como utilizá-la de forma saudável, como estabelecer, por exemplo, com o smartphone, uma relação instrumental ao invés de uma relação simbiótica. E esta dinâmica atravessa a história: quantos dos nossos ancestrais hominídeos devem ter se queimado ou mesmo morrido antes de aprender a utilizar o fogo de forma segura?
Um último exercício, não por nostalgia, mas por inteligência: não devemos nos esquecer os relatos da história, pois segundo tais relatos, as pessoas viviam suas vidas mesmo sem o motor a vapor, sem o rádio, sem o automóvel, sem a TV e até mesmo sem as tecnologias digitais. Também não nos esqueçamos das estórias, aquelas contadas pelos nossos avós, que nos falam de outros tempos onde problemas importantes eram resolvidos com fósforos, velas e lenha.
Não esqueçamos que um smartphone precisa de uma bateria carregada por eletricidade, e que a eletricidade talvez venha de uma usina termolétrica, que por sua vez queima carvão (é tentador, mas foge ao tema deste texto entrar na importantíssima questão ecológica).
O smartphone é talvez o batcinto de utilidades do nosso tempo. Mas ele não é e nem precisa ser um órgão vital. Nem para o Batman – ele sabia que havia momentos em que precisava ser apenas Bruce Wayne. E que Bruce desligaria, de vez em quando, seu iPhone6.