Sobre o amor nos tempos do cólera

por Aurea Caetano

Parafraseando o título do magnifico livro de Gabriel Garcia Marques proponho uma discussão a respeito da impossibilidade de viver o amor nestes tempos de ódio e violência.

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Vivemos aprisionados em nossas casas, escritórios, automóveis, em aquários supostamente protegidos e morremos de medo de nossos vizinhos concretos. Usamos nossos celulares, tablets e computadores em desesperadas tentativas de estabelecer algum tipo de contato, mesmo que virtual. É preciso fazer contato, precisamos muito fazer contato – sabemos que apenas através da relação com o outro podemos encontrar nosso melhor e nosso pior, podemos crescer e nos desenvolver.

Relacionamentos virtuais crescem num esforço de construir pontes, estabelecer novas relações, sair do isolamento não desejado. Podem funcionar como canal de expressão ao mesmo tempo em que denunciam nossa tentativa de viver de forma mais protegida. O real, o mundo externo, a vida lá fora são assustadores. Como encarar a violência que permanece à espreita?

Mas, estaremos tão protegidos assim? A violência está entre nós, a cada passo, de forma real, mas também virtual, somos atingidos por armas mas também por “não likes”, ignorados por uns, odiados por outros, amados por alguns, somos alçados ao ostracismo por haters. Desejamos tanto quanto tememos o relacionamento.

Postagens mais que diárias, fotos no “Insta”, vários tipos de exposição narcísica: precisamos mostrar ao mundo quem somos, ou melhor “como somos legais”. Mas, ao invés de encontrar o olhar do outro para que minha existência seja confirmada, busco meu próprio olhar e através dele à semelhança de um *uroborus continuo ao redor de mim mesmo. Isolamento em lugar de contato verdadeiro.

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As semelhanças são cada vez mais valorizadas
 
Nas assim chamadas mídias sociais, e também nos sites de busca, muitas vezes acabamos por encontrar mais do mesmo, acentuando as características e formas de funcionar que já conhecemos. Andamos em círculos ou melhor circulamos entre estradas e cidades já conhecidas, vendo, revendo e revisitando sempre os mesmos pontos.

Sabemos já que mecanismos de busca na Internet favorecem o encontro de resultados cada vez mais “adequados” ou em sintonia com meu perfil de busca. Para cada um de nós, um tipo de resultado, dependente do tipo de busca que costumamos fazer, do tipo de site que costumamos acessar e do tipo de palavras que costumamos usar. Caminhamos e vivemos em círculos.  A tendência é encontrar “ mais do mesmo”, nos relacionamos com pessoas iguais a nós mesmas, que circulam nos mesmos grupos. O que pode proteger, pode também isolar e esterilizar.

As semelhanças são cada vez mais valorizadas, o diferente excluído. Grupos de pertencimento são definidos, criamos microcosmos cada vez mais perfeitos, seguros. E, surge a exclusão e/ou a intolerância! Não há espaço para o diferente! Não há espaço para a criatividade e fertilidade que o outro, o não eu, pode provocar.

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Como sair desta encruzilhada?

Estaremos fadados a viver entre iguais?

Como lidar com a absurda violência, com a cólera que nos atinge em todos os níveis?

Conseguiremos desenvolver um olhar mais compreensivo em relação a nós mesmos e aos outros? Empatia e compaixão poderiam ser antídotos?

Para onde caminhamos nós?

* O Uroborus é a cobra mitológica que está eternamente a engolir o próprio rabo.