por Monica Aiub
“O grande prestígio da neurociência nas sociedades contemporâneas nasce da desesperança de que elas possam mudar. O sofrimento com males sociais é um drama que passou a ser vivido como se fosse responsabilidade individual, por isso, quando há algo errado com uma pessoa, a primeira hipótese que se levanta é a de que ela precisa de socorro farmacológico, ou seja, que a solução para seu problema precisa ser buscada em nível molecular. As drogas psiquiátricas, por estarem cada vez mais disponíveis, se tornaram soluções individuais para males coletivos, e é isso que faz com que elas tenham cada vez mais sucesso.” (João Teixeira, Filosofia do Cérebro, p. 79)
Inicio este artigo com a citação de João Teixeira, que abre a conclusão de seu livro Filosofia do Cérebro (Paulus, 2012). Já comentei este livro em artigos anteriores, e o trago novamente à discussão dada a sua importância no contexto em que vivemos. O livro trata de uma filosofia da neurociência, ou seja, uma reflexão sobre suas bases epistemológicas, lógicas, metafísicas e, principalmente, sobre suas implicações éticas e políticas.
A neurociência ocupa, hoje, o lugar de ciência que serve como fundamento a outras ciências. Queremos explicar a vida, a sociedade, o universo a partir do estudo dos neurônios. Não que estes não nos permitam saber mais sobre nós mesmos e sobre o mundo em que vivemos, mas seu estudo não tem abrangência suficiente para responder a questões de todas as naturezas.
Gilbert Ryle, em Dilemas, nos mostra que muitos dos dilemas que vivemos hoje não são de fato dilemas, são apenas falsos dilemas, gerados por transgressões categoriais, ou seja, colocamos numa mesma categoria elementos que pertencem a categorias distintas. Por exemplo, tentamos responder questões científicas com argumentos religiosos, ou vice-versa.
Não estaríamos fazendo isso quando tentamos explicar e resolver males sociais com interferências na bioquímica do cérebro dos indivíduos, ao invés de pesquisarmos formas para resolvermos os problemas sociais que nos afligem? Insatisfação com o trabalho? Tome medicamento! Problemas nos relacionamentos interpessoais? Tem medicamento! Angústia diante da discriminação e da violência? Mais medicamentos! Tristeza por que seus projetos não estão se concretizando? Tem remédio! Indisciplina na escola? O psiquiatra resolve! Ansiedade gerada pela exigência de padrões de vida e consumo? A indústria farmacêutica tem a solução… São muitos os problemas que dizem respeito a nossos modos de vida em sociedade que tendem a ser solucionados com intervenções medicamentosas. Será que este caminho resolve os problemas?
No mesmo livro, João Teixeira afirma: “O consumo de medicamentos parece afetar as emoções associadas a estados mentais, mas não sabemos ainda se esses estados mentais são de fato modificados. Por exemplo, impulsos suicidas podem ser aliviados por algum tipo de ansiolítico ou neuroléptico. Contudo, isso não significa que possamos afirmar que a ideação suicida tenha sido eliminada ou afetada pela medicação. Um ansiolítico pode atuar apenas para ajudar a esquecê-la ou adiá-la temporariamente. É por isso que podemos questionar se antidepressivos alteram ou suprimem estados mentais e supor que esse tipo de efeito constitua uma evidência em favor da ideia de que a mente é inteiramente determinada pelo cérebro.” (2012, p. 27).
Desconhecemos o funcionamento do mental e queremos explicá-lo por algo que também desconhecemos: o cérebro. Mais do que explicá-lo, queremos modelá-lo. Contudo, como questiona João Teixeira, o medicamento modifica nossas ideias ou apenas as atenua? Modifica nossas emoções ou apenas as contêm? Elimina nossas dores, ou apenas as anestesia? São questões que não temos como responder exatamente. Ainda assim, tendemos a responder a estas e muitas outras questões com base no princípio que alterar estados cerebrais corresponde a alterar estados mentais; e que estados cerebrais são alterados pelo funcionamento bioquímico do organismo. Temos alguns indicativos que confirmam a segunda hipótese, mas para a primeira, nossas pesquisas ainda são, de fato, incipientes.
Mas o que quero destacar aqui, é a primeira frase da citação com que inicio o artigo, que afirma que “O grande prestígio da neurociência nas sociedades contemporâneas nasce da desesperança de que elas possam mudar”. Se buscamos medicamentos que alterem nossos cérebros para que possamos suportar nossa existência, é por que não acreditamos que nosso existir possa ser modificado. Mas quem disse que o modo como existimos é a única possibilidade? Quem garante que estamos determinados a viver de acordo com padrões que não são condizentes com nossas necessidades? Precisamos, de fato, extirpar a angústia, ou podemos considerá-la como um indicativo de necessidade de mudança?
Às vezes temos a impressão de que as sociedades, tal qual estão organizadas hoje sempre foram assim. Que naturalmente vivemos desta maneira há milênios. Isto não é verdade. O mundo, tal como vivemos hoje, é uma construção moderna. Com isto quero dizer que o tipo de vida que temos começa a se delinear na modernidade, ganha novos contornos em finais do século XIX, mas ainda é essencialmente pautado no Iluminismo. Um modo de vida construído historicamente, que é naturalizado e, consequentemente, visto como imutável, como determinístico.
As certezas de que o mundo sempre foi e sempre será desta maneira nos desconsola, retira nossa perspectiva de que as coisas possam ser diferentes. Quantas vezes você já se sentiu derrotado(a), impotente, como se o mundo não fosse um lugar para você? Quantas vezes você desacreditou que seria possível fazer algo completamente diferente dos padrões vigentes? Já arriscou tentar?
O mais interessante é que o mesmo argumento que serve para nos dissuadir da ideia de tentar algo diferente é o mesmo que nos permitiria as modificações: você pensa que vive sozinho? De fato, não vivemos sozinhos no mundo. Partilhamos o mundo com muitas outras pessoas. Não conseguimos gerar mudanças sozinhos, mas será que de fato as desejamos sozinhos? Nossos espaços para a conversação livre, para o convívio, para partilharmos nossos pensamentos, estão cada vez menores. Cada vez nos isolamos mais, com a ilusão de que estamos unidos pela redes sociais, pelas tecnologias.
Vejo, constantemente, no consultório, pessoas que pensam que só elas estão insatisfeitas, só elas vivem a solidão, só elas se sentem angustiadas… se todas elas se unissem, se conhecessem os pensamentos umas das outras, talvez não se sentissem tão estranhas no mundo, talvez não desejassem um processo de adaptação ao mundo que aí está, mas buscassem, juntas, formas para transformá-lo. Daí a proposta: que tal criarmos mais espaços de convívio, onde possamos ser quem somos diante do outro? Onde possamos, juntos, investigar as possibilidades de construção de uma realidade mais adequada a nossas expectativas? Nisso a filosofia tem um significativo papel: propiciar o pensar-junto-com-o-outro, propiciar o diálogo.
Referências:
RYLE, G. Dilemas. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
TEIXEIRA, J. F. Filosofia do Cérebro. São Paulo: Paulus, 2012.