por Monica Aiub
Em 1964, Jean-Paul Sartre recusou o prêmio Nobel de literatura e, na ocasião, Gilles Deleuze escreveu um artigo intitulado: “Ele foi meu mestre”, cuja tradução foi publicada no livro A ilha deserta e outros textos.
Ao estabelecer as diferenças entre o mestre e o professor, Deleuze cita duas características fundamentais do mestre: a solidão e uma certa agitação, uma certa desordem do mundo na qual surgem os mestres. Ao ler a afirmação de Deleuze, lembrei-me das muitas queixas de solidão que aparecem no consultório.
Idalina Krause, no livro A arte de compartilhar, apresenta a SSAS (Síndrome da Solidão Aguda Severa ) como uma “epidemia devastadora”, citando alguns casos comuns a muitas pessoas.
Você já sentiu a solidão da incompreensão? Parece que você é a única pessoa do mundo a ver as coisas de uma determinada maneira; parece que só você pensa assim, só você é assim. A beleza do trabalho terapêutico é a aproximação ao mundo existencial das pessoas. No consultório, o partilhante (paciente) conta como vê o mundo, os outros e a si mesmo; como sente, pensa, planeja, age…
O objetivo de um filósofo clínico não é julgar, replicar, rebater ou convencer; mas investigar, compreender, pensar junto com o partilhante. Assim, acompanhando os relatos das vivências das pessoas é possível observar que, embora pareça que só você pense diferente, muitos de nós pensamos, sentimos, compreendemos, agimos e somos de maneiras radicalmente distintas do que é considerado “normal”, “comum”.
Se conseguíssemos ouvir mais os outros, observar sem julgar e sem querer convencer o outro de que estamos certos, e se conseguíssemos interlocutores com a mesma postura de escuta atenta, de dis-posição para pensar junto conosco, talvez percebêssemos que esse “ver, pensar e sentir diferente de todo mundo” é muito mais comum do que imaginamos. Consequentemente, a solidão de ser o único ser no universo a não partilhar um mundo ou um sistema pré-estabelecido seria minimizada.
Você já observou como as pessoas enxergam o mundo de modo tão singular? Já teve curiosidade em saber como as pessoas constroem suas visões de mundo? Por que pensam como pensam? São como são? Já observou isso em você mesmo?
A solidão de constatar nossa “inadequação” ao padrão instituído, ao “ser como todo mundo é”, pode, de um lado, nos entristecer, nos deprimir. Pode excluir, calar, isolar; pode provocar sofrimento e estagnação na tentativa de uma pseudo-adequação a um sistema ou opinião vigentes. De outro lado, pode ser exatamente essa solidão a nos levar a dizer algo em nosso próprio nome, a suscitar o surgimento de uma novidade radical, a propiciar um olhar para nosso modo de ser, nossas forças, fragilidades e medos, e, consequentemente, nos permitir a construção de formas de vida adequadas a nossas necessidades.
Quando iniciei os estudos em filosofia, ouvia de meus professores – alguns deles grandes mestres, no sentido explicitado por Deleuze – que a filosofia é uma atividade solitária. A princípio entendi essa afirmação como se referindo à necessidade de leitura dos textos, de escrita, algo que, pensava eu, exige um certo isolamento. Mas questionava a afirmação lembrando a necessidade do diálogo, das provocações do outro ao curso de nosso pensar levando-nos a revisitar os caminhos percorridos por nosso pensamento.
Solidão em questão
Só muito mais tarde pude compreender o que meus professores diziam. Eles não se referiam a um estar só no sentido de isolar-se para ler, estudar ou escrever. A solidão em questão é a solidão de quem pensa, sente, fala e vive por si mesmo, ainda que suas ideias contrariem a ordem estabelecida, a opinião vigente, o padrão instituído. Essa solidão é o “abandono” do qual nos fala Sartre: estamos sós e sem desculpas; somos responsáveis por aquilo que fazemos de nós e, consequentemente, pela humanidade que construímos.
É comum encontrar pessoas que reivindiquem e ao mesmo tempo temam a liberdade, que busquem e não suportem conviver com a solidão. O estar só não é uma constatação fácil, mas também não é uma opção. Ainda que estejamos cercados por outras pessoas ou por uma verdadeira multidão; ainda que muitos pensem como nós sobre diversos aspectos; ainda que muitos jurem presença, companhia e partilha eternas; ainda assim estamos sós. Partilhamos alguns momentos, temos companhia às vezes, mas somos os únicos responsáveis por aquilo que fizemos de nós mesmos, pelas formas de vida que escolhemos construir e viver.
Você já se sentiu só diante de sua própria voz? Já se percebeu rejeitado, excluído, porque falava por si mesmo? O pensar diferente provoca, em muitas pessoas, a sensação de inadequação, o medo de enlouquecer, a vergonha por não ser como todo mundo é, a solidão.
Há certa confusão entre solidão e rejeição. Estar só é falar por si mesmo, é não ter diante de si, nem atrás de si, algo que lhe ampare, que lhe sustente; é não representar ou ser representado por algo. Rejeição é repulsa, desaprovação. Estar só não implica em rejeição e esta não leva necessariamente à solidão.
Solidão implica em falar em próprio nome
O que muitas vezes ocorre é o medo de ser rejeitado por dizer algo por si mesmo e desagradar o outro. Quando se diz algo por si, quando se compreende que a solidão implica em falar em próprio nome, em não se esconder atrás de uma instituição ou de uma coletividade, novos rumos se abrem. Expõe-se aquilo que se é, mostra-se em suas forças e fragilidades. É como estar nu diante de uma platéia vestida. E a platéia pode gostar ou não do espetáculo. E se o outro não gostar do que vê? E se não pensar como eu? E se eu não encontrar respaldo na opinião vigente? O medo que paira sobre a aceitação ou a rejeição de nossas ideias, muitas vezes nos cala.
Contudo, calar é também uma postura, uma postura que pode nos manter sós. Não um calar para nada dizer, um aquietar-se para ouvir o outro, mas um calar por medo de pensar diferente, por medo de um julgamento.
Seria a solidão um sentimento diante da ausência de um outro, da ausência de vínculos? Seria ela uma ausência de si mesmo? Ou seria ela o assumir-se só diante da vida, o ato de falar por si mesmo, ainda que junto-com-o-outro, em postura atenta e radical? Se você é ou se sente só, como significa sua solidão? O que ela provoca em você?
Referências Bibliográficas:
DELEUZE, G. A ilha deserta e outros textos. São Paulo: Iluminuras, 2006.
KRAUSE, I. A arte de compartilhar: Filosofia Clínica. Porto Alegre: Evangraf, 2007.
SARTRE, JP. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1973.