por Leonardo A. M. Cosentino – psicólogo do NPPI
“Você veste uma jaqueta confortável revestida com sensores e motores musculares. Cada movimento do seu braço, mão e dedos são reproduzidos em outro lugar por mãos mecânicas móveis. Leves, habilidosas e fortes essas mãos têm seus próprios sensores através dos quais você vê e sente o que está acontecendo. Usando esses instrumentos, você pode trabalhar em outra sala, em outra cidade, em outro país ou em outro planeta. Sua presença remota possui a força de um gigante ou a delicadeza de um cirurgião. Calor ou dor são traduzidos em sensações informativas, mas toleráveis. Seu trabalho perigoso se tornou salvo e prazeroso” .
O texto acima bem que poderia ser uma notícia atual dos últimos avanços no mundo da robótica, mas é uma tradução livre das linhas iniciais do manifesto de Marvin Minsky, publicado em 1980.
Neste texto, o autor cunha o termo telepresença se referindo à ideia de ferramentas de controle remoto, enfatizando a importância de mecanismos sensoriais e da integração total com seu usuário. De maneira geral, a telepresença pode ser definida como o conjunto de tecnologias que possibilita que um indivíduo sinta, ou aparente estar presente em outro lugar. Além disso, deve permitir projetar suas ações para um lugar diferente de sua verdadeira localização. Muito do que foi concebido há trinta anos, na esteira dos primeiros braços mecânicos controlados por humanos da década de 40, provou ser o embrião de diversos adventos tecnológicos recentes. No entanto, apesar dos expressivos avanços nessa área desde então, o manifesto de Minsky não descreve precisamente o cenário atual. Pelo menos não o cotidiano da maioria das pessoas.
Nas últimas décadas, assistiu-se a uma grande expansão dos adventos tecnológicos voltados para a substituição ou extensão da presença humana. Porém, ainda não se vê por aí robôs capazes de replicar informações à distância captadas por um casaco. O que se observa é a configuração da representação humana através do computador. Os substitutos cotidianos não são construídos por peças de metal e acoplados ao corpo, mas formados por pixels e comandados pelo mouse e pelo teclado.
Atualmente, os avatares povoam o mundo virtual desde as redes sociais, passando pelos videojogos, até as caixas de correio eletrônico. Esses prolongamentos no ciberespaço possibilitam uma representação visual individual, experienciar uma multiplicidade de identidades, a possibilidade de vivências que de outra forma seriam impossíveis, a expansão da presença física e até a existência de uma vida mental na ausência de um corpo. A imersão no mundo virtual foi se constituindo como uma experiência cada vez mais integrada ao cotidiano. E nessas imersões, pessoas vêm e vão, alguns voltam à tona apenas para um breve respiro e outros estão se afogando em mergulhos profundos. O contínuo entre o indivíduo e seus avatares foi tornando cada vez mais permeável a fronteira entre o presencial e o virtual.
Até agora, os avatares habitavam predominantemente o ciberespaço. De certa maneira, essas representações estavam confinadas ao mundo virtual. Até agora. Já estão disponíveis no mercado diversos modelos de robôs controlados à distância usando conexão de internet. A maioria dos modelos pode ser controlada pelos periféricos convencionais e acessada por navegadores de internet presentes em um computador comum. Os exemplares no varejo estão longe daquela sofisticação tecnológica exibida nos filmes de ficção. A grande parte deles parece uma enceradeira ou uma luminária de chão com monitor. Não possuem braços articulados ou pernas. Mas, se você morar nos estados unidos e tiver entre US$5.000 e US$30.000 para gastar, já pode reservar o seu.
Considerando o recente avanço da tecnologia e a redução no custo dos materiais, era de se esperar a concretização de parte das ideias presentes no manifesto de Minsky. Dessa forma, a consolidação de um mercado de avatares pessoais nem soa como uma grande novidade. No entanto, surgem novas e velhas indagações a respeito dos desdobramentos dessa tendência sobre o ambiente e, especialmente, sobre os seres humanos.
Para abordarmos algumas dessas questões, é necessário primeiramente entender porque os indivíduos são afetados por experiências em ambientes simulados.
Do ponto de vista biológico, as emoções teriam como função ajustar um organismo para responder de maneira mais adequada ao problema que está enfrentando. Diante de uma situação perigosa, o medo resume uma complexa coordenação de mecanismos de percepção, atenção, memória, aprendizado, prioridades motivacionais, escolhas de objetivos, reações fisiológicas, reflexos, sistemas motores e muitos outros. Tudo isso para possibilitar uma resposta apropriada, como por exemplo a luta ou fuga, diante daquele contexto disparador do medo. Qual seria, então, a função de se emocionar assistindo a um filme, a uma peça de teatro, jogando um videogame ou se relacionando com personagens do mundo virtual? Muitas dessas situações não exigem respostas a problemas enfrentados pelo próprio indivíduo.
Para a psicologia evolucionista, um dos grandes desafios apresentados pela rápida velocidade das transformações culturais, em comparação com as biológicas, é a formação de um cenário no qual há grande disparidade entre o ambiente e as adaptações do organismo que o habita. As adaptações morfológicas, fisiológicas e mentais são frutos de pressões seletivas razoavelmente estáveis ao longo de gerações, que selecionam determinadas características benéficas para seus detentores. Tais processos podem levar alguns milhões de anos. Por outro lado, as transformações culturais que impactam diretamente o ambiente podem acontecer numa escala de tempo muito mais reduzida. Por exemplo, a internet aberta para exploração comercial no Brasil tem apenas 15 anos aproximadamente. Durante esse tempo, assistiu-se a uma alteração substancial no meio e nas relações humanas advindas da absorção dessa tecnologia no cotidiano.
Dessa forma, as transformações no equipamento biológico humano não acompanham as rápidas transformações ambientais. Em poucas palavras, nossa mente ancestral habitaria um mundo moderno; e essa assincronia estaria relacionada a diversos comportamentos aparentemente inadequados ou sem função óbvia. Sendo assim, o fato das pessoas se emocionarem em ambientes simulados está, aparentemente, relacionado ao fato da mente não distinguir muito bem o que é simulado e o que é real. E isso se deve, em grande parte, porque essa distinção não existia no ambiente ancestral.
No entanto, a tendência da telepresença adiciona complexidade ao cenário. Nossa mente ancestral habitaria não só um mundo, mas agora também um corpo moderno. E embora mediado pelo ciberespaço, esse corpo moderno não está imerso em um ambiente simulado. Ao longo de 99% da história evolutiva humana, as relações sociais foram estabelecidas predominantemente face a face. A internet é uma mídia de comunicação bem afastada do modo mais “natural” de comunicação. Mas, apesar de exigir maior esforço cognitivo e apresentar significativos prejuízos no fluxo de informações trocadas no ciberespaço, os indivíduos são capazes de superar esses obstáculos.
A potência da internet se expressa nas transformações das relações humanas realizadas em intersecções virtuais. A telepresença robótica, por sua vez, coloca a possibilidade de agir diretamente sobre o mundo físico. Se a riqueza de experiências proporcionadas pelo ciberespaço parece atraente, as possibilidades que se abrem por ter um prolongamento de si mesmo, habitando o mesmo plano, se mostram extremamente fascinantes e qualitativamente diferentes.
Por exemplo, daqui algum tempo poderíamos controlar nossos robôs para ir fazer compras em dias frios ou preguiçosos, ou simplesmente para buscar um copo de água na cozinha. Poderíamos também trabalhar em vários lugares distantes do conforto de nosso lar, e visitar a boca de um vulcão ou escalar uma montanha apreciando suas belezas sem temer os perigos associados a essas explorações. Essa tecnologia possibilitaria também que um médico possa visitar pacientes distantes; e que pessoas com dificuldade de locomoção, ou em lugares remotos, experimentassem uma sensação de maior proximidade com amigos e família. Mas, poderíamos ainda pegar nossos robôs para ensinar uma lição naquele vizinho chato ou no arruaceiro que agrediu nosso filho; poderíamos também invadir o sistema do robô de outrem para fuçar a vida alheia ou até mesmo praticar uma série de delitos sem sair de casa. Tudo isso sem mencionar o uso industrial e militar.
Assim como ocorreu com a internet, após um estranhamento inicial, é possível que a telepresença robótica venha a ser bastante presente e integrada ao dia a dia das pessoas. Mesmo considerando as vicissitudes associadas à mediação eletrônica, são inúmeras as possibilidades que se abrem diante de um advento tecnológico como esse. Ademais, é possível que as sensações, percepções e emoções sejam experienciadas de maneira mais intensa através de avatares físicos do que de seus equivalentes cativos do ciberespaço. Transitar sobre o mundo físico, e dividir a mesma localidade de seu interagente, representam um avanço na escala de “naturalidade” das mídias de comunicação.
Por fim, vale lembrar que, da mesma forma como aconteceu com outros adventos, não cabe julgarmos a tecnologia pela sua potencialidade de usos diversos.
O foco de nossas reflexões deve ser sobre o seu usuário. E se o foco recai sobre este, inevitavelmente, teremos de enfrentar questionamentos sobre as repercussões da telepresença nas relações humanas, a possibilidade da substituição de mão de obra , da aceitação dos demais em interagir com um agente remotamente controlado e da possível fusão das experiências mediadas e não mediadas pelo robô . Mas, considerando o cenário atual, talvez ainda seja um pouco cedo para definir algumas respostas. Provavelmente, ainda levará um tempo para essa tecnologia se tornar acessível para a grande maioria. E enquanto meu avatar não pula para fora da tela, vou eu mesmo buscar um copo de água na cozinha, pensando: o contínuo entre o mundo físico e o mundo virtual deu uma volta.