por Dulce Magalhães
Outro dia ao desembarcar no aeroporto de Porto Alegre, segui de automóvel para Passo Fundo, onde iria realizar uma palestra e o tempo era bastante curto.
Estava meio chateada por não ter conseguido horário de voo em função de uma agenda difícil.
Além disso sempre há um nível de risco numa viagem rodoviária, as estradas estão com muito movimento e a preservação é coisa complicada. Assim, meu ânimo não era dos melhores.
Para minha satisfação o motorista que me esperava no aeroporto era um rapaz cordial, bem-humorado e ao menos aparentava ser bastante tranquilo.
Isso já melhorava um pouco a perspectiva da viagem. De todo modo me instalei no automóvel disposta a repassar todas as atividades a realizar na próxima semana, além disso queria colocar em dia a leitura da correspondência. Enfim, imaginava ficar na minha. Entretanto, meu muito simpático motorista não tinha os mesmos planos, começou a discorrer sobre as peculiaridades da região que estávamos percorrendo.
Informações genéricas como clima, economia, costumes. Apesar do propósito inicial, muito educadamente, porém a contragosto, procurei concentrar alguma atenção no discurso cultural de meu colega de viagem. No início eu dava apenas respostas monossilábicas, do tipo sim, não, hum hum, aquele tipo de conversa que se tem quando não se quer conversa. Contudo, a riqueza das informações era tão grande e os temas apresentados tão interessantes, que fui vencida pela curiosidade e passei a fazer indagações sobre todo o percurso.
Como uma conversa puxa a outra, logo estávamos discutindo futebol, educação, emprego, eleições etc. Como é de se imaginar, em menos de meia hora tínhamos "resolvido" todos os problemas do Brasil e metade dos problemas do mundo, só na base da conversa. Nenhuma ideia muito nova ou original, aquilo que todo mundo já sabe que precisa mudar, buscar, realizar. Eu já estava conformada em deixar de lado a papelada que me esperava e me divertia sinceramente com a conversa, que tinha muito de fiada, mas esta mesmo é que é a mais divertida. Não estava esperando nada de muito transcendental, era realmente um papo sem nenhum compromisso ideológico ou responsável. Até que meu incansável colega veio com uma ideia muitíssimo especial. Profissional da estrada, fazendo inúmeras viagens por nossas rodovias tupiniquins, observava o perigo de motoristas que literalmente dormiam ao volante. Ele tinha matutado bastante sobre o tema e chegado à conclusão que o Governo deveria interferir no assunto e proibir o tráfego de caminhões das onze da noite às cinco da manhã.
Fiquei meio chocada com a radicalização da proposta. Então seria cabível que o Governo interferisse no direito de ir e vir? Absurdo inconstitucional. Além disso há cargas que necessitam de transporte urgente por serem perecíveis. A economia tem que andar rápido. Inabalável em seu ponto de vista muito refletido, meu singular companheiro tranquilamente rebateu um a um de meus argumentos. Todo mundo precisa dormir pelo menos seis horas, principalmente se vai “pegar” estrada. Parando as onze da noite e recomeçando as cinco da manhã, nenhum caminhoneiro estaria perdendo muito tempo, porque mesmo que ele parasse durante o dia para refeições e higiene, não seria mais do que uma hora e meia a duas, com as seis horas de sono, ainda sobrariam dezesseis horas para viajar, o que é muito até, ninguém deveria trabalhar mais do que dez horas por dia, segundo meu amigo.
Ele argumentava que as cargas percorrem em média mil quilômetros entre origem e destino, com dezesseis horas e uma média de oitenta quilômetros, poderia se percorrer 1.280 Km. Qualquer carga poderia ser transportada no período de um dia. Caso a carga fosse perecível deveria de todo modo trafegar em câmaras especiais, que podem preservar a carga por vários dias. Como argumento, final ele dizia que a interferência do Governo nesse caso visava o bem da sociedade. Uma lei como essa evitaria incontáveis mortes e tragédias.
Fiquei perplexa diante da explanação. Aquilo era mesmo caso muito pensado. Solução simples para problema complexo. Se os motoristas provocam acidentes porque dormem nas estradas, exija-se que durmam fora delas. Brilhantemente simples, simplesmente brilhante. E eu que achava estar perdendo tempo com aquela viagem, acabei convencida de ter ganho. Não propriamente pela solução encontrada por meu companheiro, mas pela convicção que temos todas as soluções que precisamos para nossas vidas. Sua generosidade ao pensar em soluções “reais” para outras pessoas, me deu uma imensa satisfação. A gente vive cheio de ideias, entretanto, são poucas as ideias realmente válidas. Só que é disso que se faz um mundo melhor. Pois saibam que meu mundo está muito melhor, conquistei um amigo!