por Rosemeire Zago
“A consciência dos sentimentos da infância não matam, libertam”
Alice Miller (Ph.D. em psicologia)
Este é o terceiro artigo de uma série sobre maus-tratos à criança e ao adolescente. Para ler o anterior clique aqui.
É muito comum ouvir as pessoas dizerem que não querem se lembrar de fatos que aconteceram no passado, pois isso trará muita dor, mas se esquecem, ou talvez não saibam, que acontece exatamente o contrário. Não é o fato de lembrar que traz dor, a dor já está lá dentro, e reprimir essa dor poderá fazê-la ter escolhas determinadas por sua própria história, exatamente a que ela deseja negar e esquecer.
Sim, conscientemente podemos agir como se não tivéssemos vivido situações de maus-tratos (psicológico/físico ou sexual), mas infelizmente essa negação não apaga nossa história, e ainda pode nos fazer reviver aquilo que fazemos tanto esforço para esquecer.
Como assim?
Você já deve ter ouvido sobre repetição de padrão ou compulsão à repetição, que nada mais é que um padrão de comportamento que se repete. É um processo inconsciente, mas muito real.
Muitas de nossas escolhas são inconscientes, e dessa forma, determinadas pela nossa história de vida. Concordo que muitas situações são esquecidas como defesa, do contrário, não suportaríamos tanta dor. E para sobrevivermos aos maus-tratos, humilhações, negligências, castigos, surras, indiferença, tivemos que escondê-los de nós mesmos. Mas enquanto não chorarmos o passado, estamos condenados a repeti-lo. É como transferir o passado para o presente, mesmo sem a consciência que estamos fazendo isso. Sim, repetir o passado que foi bom faz sentido, mas é difícil aceitarmos o fato que repetimos o que nos fez, e ainda nos faz, sofrer.
O modo como nos relacionamos com as pessoas, em especial na relação afetiva, pode muitas vezes, ser repetições inconscientes de experiências anteriores, em especial por influências da primeira infância, mesmo se essas repetições nos causem dor. Aquele garotinho pode se casar com uma mulher que seja a imagem exata de sua mãe, ainda que essa tenha lhe feito sofrer. Ou aquela garotinha pode repetir o passado casando-se com um homem tão ausente quanto fora seu pai em sua infância.
Muitos pais hoje podem também repetir com seus filhos o que viveram quando eram crianças. Quantas vezes não prometeu a si mesmo que não repetiria o que seu pai e/ou sua mãe lhe fizeram e sem querer, lá está você agindo igual? Você já parou para pensar se está repetindo alguma situação que viveu no passado? Ou ainda, as situações podem ser diferentes, mas o sentimento que sente hoje pode ser igual ao que sentia quando criança. Qual sentimento você tem que o incomoda, o deixa triste, o faz chorar, ou o faz ter reações desproporcionais ao fato?
Mas por quê? Você deve estar se perguntando. Por que nosso inconsciente nos prega tal peça?
Repetimos e repetimos o passado, na esperança que dessa vez o fim será diferente. Estamos sempre desejando, ainda que inconscientemente, controlar e mudar o que já aconteceu. É como se negássemos aceitar, seja o abandono, a rejeição, os maus-tratos que vivemos, e assim, ficaremos livre daquela dor que tanto sofrimento nos causou, e nos causa.
Mas não é assim que nos libertamos do passado e nem de nossa dor. Pense comigo, se não tivemos aprovação e reconhecimento de nossos pais quando éramos crianças, será que se agora o obtivermos irá apagar o que sentimos naquela época? Por mais que tenhamos agora, no momento presente, o que tanto desejamos no passado, o tempo não trará de volta. Você não irá receber o abraço que tanto quis naquele momento, não terá seu pai ao seu lado quando esperou que teria, sua mãe não irá comparecer na reunião da escola naquele dia que todas as mães foram menos a sua.
O que podemos fazer? Sim, temos que aceitar que não podemos voltar no tempo, mas podemos nos lembrar de tudo que passamos, de tudo que esperamos e não tivemos, chorar toda nossa dor, elaborarmos o luto por tudo que sentimos e assim nos libertarmos de nossas repetições de comportamentos. Do contrário, enquanto não tornamos nosso passado consciente, o repetiremos. Só nos tornando conscientes do que sofremos, confrontando com os conhecimentos atuais é que iremos perceber que éramos cegos porque não tínhamos quem nos protegesse da violência
Quando alguém, testemunha conhecedora (veja artigo anterior) nos ajuda a identificar os antigos padrões de comportamento de nossos pais, não somos mais obrigados a repeti-los cegamente como o fazemos. Deixamos de acreditar, como muitos acreditam, que tudo que sofremos foi para nosso próprio bem. Deixamos de idealizar que nossos pais irão mudar um dia. Deixamos de nos tratar como nos trataram. Deixamos de ser nossos piores inimigos. Deixamos de nos boicotar, acreditando que não merecemos amor. Deixamos de permitir que continuem a nos humilhar, maltratar. E quando deixamos tudo isso, podemos perceber que quando crianças fomos apenas vítimas de adultos, também com suas crianças feridas. E assim, deixamos de recriar o que tanto nos fez sofrer.