por Fátima Fontes
Introdução
"Eu não tenho direito de perder a esperança.
Não temos o direito de perder a esperança.
Apesar de tudo, é ela que nos dá fôlego para viver.
Vindo de longe, desde os primeiros anos de nossas vidas,
será esse tipo de amor que nos guiará. Essa a luz que nos acompanhará.
Sem nunca apagar. Até morrer."
Marcelino Freire, escritor, na tocante crônica intitulada "Tempo de Caça"
Fui incomodada, mexida e desafiada a sentar diante do teclado e dizer algo a mim, a vocês sobre esse nosso novo/velho momento e sobre nossas novas/velhas dores. Basta olharmos ao nosso lado, por vezes colado em nossa intimidade e nos depararemos com a complexidade e a maravilha que é o viver.
Três eventos desta vez me inspiraram mais diretamente nessa escrita, e a cada um deles dei um título. Em todos eles ficarão lançadas as flechas para um alvo que é a renovação de nossa esperança em tempos difíceis como os nossos.
O primeiro deles me chegou através de várias mensagens de pedidos de ajuda que recebi de nossos leitores no ano de 2013 sobre seus relacionamentos e suas dificuldades em situarem seus espaços pessoais, desejos e suas relações com os outros, a essa fonte intitulei de: Estabelecendo um bom território emocional e relacional.
A segunda via inspiradora me veio a partir do meu tempo de ócio contemplativo, esse sagrado tempo de cessar de trabalhar e viver o tempo de contemplar, que nos oferecemos anualmente como família, e a intitulei de Aprendendo a demarcar territórios com as aves de rapina.
O terceiro e último evento inspirador trouxe a dor de já presenciarmos nos primeiros dias de 2014, barbaridades como essa: um adolescente de 16 anos foi encontrado morto na madrugada do sábado 11 de Janeiro de 2014, na Avenida Nove de Julho, região central de São Paulo, embaixo de um viaduto, desfigurado com seu corpo completamente traumatizado e sem nem um dente na boca, a esse evento intitulei: Estabelecendo um território onde sua dor é minha dor.
1º) Estabelecendo um bom território emocional e relacional
Percebo com muita clareza a nossa dificuldade humana relacional com a demarcação daquilo que cada um de nós é e deseja para si e a fronteira com o ser e os desejos do outro.
Se esse "outro" é um íntimo, aí é que a confusão se torna maior ainda. Para muitos de nós a aprendizagem do "ser", que não se ensina em nenhum livro, por mais que muitos tentem, nem em nenhuma instituição de ensino, ainda que tenham surgido profissões para isso, e só se torna possível a partir de nossas trajetórias relacionais, é precária.
Aprendemos, inicialmente, com os que cuidaram de nós e nos socializaram a descobrir e desenvolver o nosso "ser", esse território pessoal, que depois sofrerá a influência de todas as outras relações que vivemos.
Quando nessa complexa e intrincada trama de nos estabelecermos como pessoas, crescemos inseguros e extremamente colados ao que "os outros" pensam e sentem por nós, entramos no tal mundo da precariedade relacional, e isso nada tem a ver com classe social, pois encontraremos pessoas precarizadas emocional e relacionalmente em todos os extratos da sociedade.
E vamos tender a pautar nosso mundo relacional imerso num grande pântano de queixa, onde nos afundamos em vitimizações, ruminando o tempo todo o nosso "azar", por ser: filho/a deste/desta; irmão/irmã daquele/daquela; esposo/esposa daquele/daquela; amigo/amiga daquele/daquela. A narrativa de nossas vidas parece não conter a menor alegria, pois o outro/outra é sempre a razão de nossos males e de nossas dores.
Ilusão: romper vínculos não resolve problemas relacionais
O que acho também bastante perigoso e ilusório, ou seja: irreal, é que o caminho mais usual pensado, planejado e muitas vezes executado pelas pessoas para resolverem seus problemas relacionais é a ruptura, elas acham que rompendo seus vínculos, como num passe de mágica, tudo se transformará para melhor. Ledo engano: pois romper, caso não tenhamos a humildade de reconhecermos nossos próprios erros, equívocos e fracassos, nos levará, o mais das vezes, ao estabelecimento de novas histórias relacionais "dentro do pântano da culpa do outro", e a frustração passa a ser a nova trama do viver.
Não que com isso, eu esteja propondo uma aprendizagem acomodada aos mal-estares relacionais, mas chamo a atenção de todos e todas para a complexidade de nossos relacionamentos: todos eles são complementares, então antes de ser levado por uma análise simplista e por um impulso de romper seus vínculos, analise, com frieza e sinceridade, sua coautoria no fracasso da relação e se não houver como estabelecer com "o outro" um novo e melhor cenário, marche para a mudança que pode implicar em separação, com muita atenção e vigilância sobre você e suas dificuldades. E sinto em dizer: essa atenção permanente precisará ser uma tarefa de vida inteira.
A esperança que lanço é que, saídos dos pântanos queixosos, com ou sem o outro, poderemos ser mais celebrativos e agradecidos por sermos quem somos, por podermos lutar para estabelecer novos alvos, lugares e sonhos que possam nos tornar melhores seres e melhores parceiros nas relações.
2º) Aprendendo a demarcar territórios com aves de rapina
Usufruindo do privilégio de poder realizar a escolha pessoal e familiar por um "tempo de nada fazer", me peguei nesses tempos de "parada" olhando as aves do céu, como tão sabiamente nos orientou Jesus.
E lá em cima, planava um casal de gaviões, grandes predadores de sapos, roedores, pequenos macacos e outros rastejantes que pudessem alimentá-los e à sua prole recém-nascida.
Em sua obstinação por "territorializar" as copas das árvores mais altas e ali, construir, com relativa segurança, seu ninho, percebi movimentos que muito têm a nos ensinar. Eles eram firmes na demarcação do que queriam para si, de suas necessidades e não se poupavam a atacar até aos humanos adultos, bem maiores que eles, que viessem ameaçar a integridade de seus filhotes.
Algumas lições que me chegaram: os gaviões conheciam a sua espécie, eram conectados com o ciclo da vida e numa "conduta de apetência" (como dizem os Etólogos, estudiosos que estudam o comportamento comparado do animal e do homem), não só por um instinto ou impulso, eles montam estratégias para manterem a reprodução de sua espécie, ofertando para si e seus filhotes tudo o que for necessário para isso.
Pensei na nossa dificuldade social em sermos conectados com o ciclo da vida: como nos deixamos levar por um consumo que nos adoece, como por exemplo, tomar certas bebidas que trarão "a felicidade", que vem escrita na lata ou garrafa. Quando pesquisas médicas realizadas sobre elas constatam as múltiplas enfermidades que seu consumo, ao longo de uma vida, traz e trará a nós e a nossos filhos. Pensei ainda em como vivemos e ensinamos nossos filhos a viver uma vida sem limites, sem horários, sem qualidade, e somente regida por aquilo que "me dê prazer". Como nos mantemos alheios às dores sociais que nos cercam, promovendo ações irresponsáveis de extermínio, violências e de banalização à vida do outro. Tudo isso promove mortes, adoecimentos, sofrimentos e compromete a nossa espécie.
Eles, os gaviões, se mantinham atentos e vigilantes às prováveis formas de ameaça a eles e à sua prole. Neste ponto, me peguei mais impactada: como "estar atentos" às ameaças que podem destruir a nós mesmos e à nossa espécie, quando mantemos, constantemente, nossos olhos "vidrados" nas redes sociais, nas intermináveis postagens de fotos "sempre felizes", que "temos que enviar" para nossa legião de seguidores? Ensinamos nossos bebês a manejarem os teclados de aparelhos eletrônicos com muita perícia e atenção, com isso, dentre outras coisas, os privamos de olhar o mundo, de brincar de roda, de esconde-esconde real, com o amiguinho, vizinho, de aprender sobre a realidade que está posta fora da tela virtual: com suas belezas, feiuras, injustiças, perigos e necessidades.
Fica lançado o desafio dos gaviões: ou nos tornamos mais atentos ao nosso mundo real, aos perigos e às necessidades reais que nos envolvem, ou seremos de maneira brutal e lenta, dizimados, seja no mundo das espécies, seja no mundo das relações ou das emoções.
3º) Estabelecendo um território onde sua dor é minha dor
O jovem tinha sido visto pela última vez em uma festa destinada ao público gay no bairro da República (região do centro da cidade de São Paulo).
Pela mídia soubemos que dentro da boate, Kaique Augusto Batista dos Santos teria dito a amigos que havia perdido a carteira e o celular. O grupo se separou para procurar os objetos e Kaique não foi mais visto.
Segundo pessoas da família em depoimentos imediatos ao terrível incidente de Kaique e que fizeram o reconhecimento do corpo, não havia dentes na boca do garoto. Uma barra de ferro estava dentro da perna dele. As causas da morte descritas no atestado de óbito são traumatismo craniano, traumatismo intracraniano e agente contundente.
Porém, o boletim de ocorrência foi registrado como suicídio no 2º DP (Bom Retiro), mas ainda não havia, segundo a Polícia Civil, evidências do que aconteceu e a linha de investigação ainda poderia mudar. Na manhã do dia 22 de janeiro de 2014, portanto treze dias depois da morte do Kaique, sua mãe reconheceu em nota pública que o filho se suicidara. Essa hipótese, segundo ela, foi reforçada pelas mensagens de despedida deixadas em seu diário. Inicialmente a família falava em crime com motivação homofóbica.
Para além da verdade sobre o que aconteceu naquela noite, ainda que seja importante apurá-la com a seriedade e lisuras necessárias pelos órgãos constituídos para isso, sob o olhar vigilante de uma sociedade que por justas razões tem perdido a confiança nessas mesmas instituições, há um cenário de dores que precisam ser choradas.
Há um adolescente que perdeu a vida que mal lhe foi apresentada, no auge de seu desenvolvimento mental, emocional e social, que não pôde sonhar e realizar, errar e transformar, crescer, amadurecer e ter o privilégio de envelhecer dignamente. Ele teve quase todas as etapas de seu ciclo da vida ceifado e isso é profundamente triste, pede um luto, pede minutos de silêncios.
Uma cidade, um país, um planeta que não se preocupar com a morte de seus adolescentes, que não chorá-las publicamente, estarão condenados a se extinguirem, a se tornarem sombrios e tóxicos em todas as suas dimensões.
Vem agora o espaço esperançoso: olhemos compadecidamente para as dores que nos cercam, procuremos uma forma de ajudar esse que sofre junto de nós e que, é tão humano quanto nós, e clama por nossa humanidade. Penso que podemos usar as ferramentas que temos: nossas profissões, nossas conversas, nossa participação comunitária e política, nossas pentenças institucionais, enfim, onde estamos e sendo como somos podemos nos unir ao que precisa de nós.
E para finalizar…
E é com um poema de um sábio homem chamado Jacob Levi Moreno, criador no século XX do Psicodrama (especialidade das Psicoterapias), termino esse texto. Desejo novos territórios para nós e nossos vínculos, que não percamos a esperança, mas a utilizemos para pensar, sentir e agir.
Divisa
J. L. Moreno
Mais importante do que a ciência é o seu resultado,
Uma resposta provoca uma centena de perguntas.
Mais importante do que a poesia é o seu resultado,
Um poema invoca uma centena de atos heroicos.
Mais importante do que reconhecimento é o seu resultado,
O resultado é dor e culpa.
Mais importante do que a procriação é a criança.
Mais importante do que a evolução da criação é a evolução do criador.
Em lugar de passos imperativos, o imperador.
Em lugar de passos criativos, o criador.
Um encontro de dois: olhos nos olhos, face a face.
E quando estiveres perto, arrancar-te-ei os olhos,
E colocá-los-ei no lugar dos meus;
E arrancarei meus olhos e colocarei no lugar dos teus;
Então ver-te-ei com os teus olhos
E tu ver-me-ás com os meus.
Assim, até a coisa comum serve o silêncio,
E nosso encontro permanece a meta sem cadeias:
O Lugar indeterminado, num tempo indeterminado,
A palavra indeterminada para o Homem indeterminado.
Traduzido de "Einladung zu einer Begegnung", por J. L. Moreno, pág. 3, publicado em Viena,1914. Livro: Psicodrama. J. L. Moreno. São Paulo: Editora Cultrix, 1978, Epígrafe do Livro.