por Fátima Fontes
Introdução
“Há pessoas que têm olhos no coração e que olham para tudo com esse olhar.”
(personagem ancião Muhtar Davut de uma aldeia Turca, no filme ‘Mucize’ (The Miracle),Turquia, 2015.
Neste artigo, que mais uma vez nos coloca juntos refletindo sobre “Nós e nossos vínculos”, aproveitei os vários estímulos que recebi durante este último mês, através do cinema e de boas notícias na mídia escrita.
Em todos eles aparecem situações em que o coração é a grande bússola, é o fio condutor dos envolvidos em ações que transformam e minoram sofrimentos. E que banho de esperança e alegria foi derramado sobre mim, desejo então respingar essa boa água sobre vocês leitores e contagiá-los de alegria e esperança.
No filme turco de 2015, intitulado ‘Mucize’, que em turco significa milagre, acompanhamos a chegada de um professor numa longínqua aldeia da Turquia, que ao chegar ali, após penosa viagem, descobre que não havia escola para que ele desse aula. Ainda acreditando na ação governamental, tenta o caminho político-educacional para a construção da escola, ouve um sonoro “nada podemos fazer”, que ao invés de barrá-lo em seu intento, o estimula a bolar um plano, nem tão politicamente correto, mas que assegura a construção da escola e o acesso de meninos e meninas ao conhecimento que poderá libertá-los de uma vida sem horizontes.
A partir daí, somos delicadamente introduzidos no cotidiano da aldeia que será transformada a partir da nova experiência. Vale a pena assisti-lo. E como é tocante acompanharmos a vida de pessoas e organizações que não medem esforços para melhorar a vida e as relações entre os homens.
Elegi, então, duas histórias para ilustrar nossa reflexão, uma envolvendo cidadãos do mundo e outra focando a ação cidadã de uma mulher na cidade de São Paulo que supera os limites de sua condição de vida, nas bordas de uma cidade que não dá conta de cuidar dos cidadãos que perdem seu status trabalhador e se tornam andarilhos pelas ruas da cidade e resolve cuidar de pessoas como ela.
Que essas experiências nos inspirem a ir além do nosso quadrado pessoal e familiar, e nos estimulem a cuidar melhor de tudo o que nos cerca a partir de quem somos e de boas escolhas que façamos.
Salvar crianças: a vacina indiana e os Médicos sem Fronteiras
Apesar do ser humano se gabar de ser o “topo da cadeia” do desenvolvimento animal, nele se abriga a mesma fragilidade orgânica defensiva encontrada em outros animais menos evoluídos. É o caso da nossa vulnerabilidade aos vírus que habitam a terra junto conosco, especialmente o rotavírus, que é transmitido pela via oro-fecal, que provoca verdadeira comoção gastrointestinal em quem o aloja e cujo controle em lugares onde não haja tratamento de águas e rede de esgoto é quase impossível, segundo nos contou o biólogo Fernando Reinachi, em sua coluna semanal em um jornal paulistano de grande circulação, no Sábado, 25 de Março de 2017 (Caderno A 21).
Em países pobres os rotavírus são responsáveis por 37% das mortes infantis por diarreia, promovendo todos os anos cerca de 215 mil mortes em crianças com menos de 5 anos, ao contrário dos países em desenvolvimento em que a imunização de crianças contra esse vírus, recomendada pela Organização Mundial de Saúde desde 2009, vem ocorrendo progressivamente o que tem permitido que as internações hospitalares por ação do vírus tenham sido reduzidas em 90%.
O maior dos percalços enfrentados para a imunização das crianças pobres, deve-se ao fato de que as vacinas desenvolvidas por grandes monopólios farmacêuticos, perdem sua ação se não forem armazenadas em geladeiras, e em muitas regiões do mundo ainda não há energia elétrica, o que condenaria todas as crianças desses lugares a uma não imunização.
Mas aí entram os caminhos do coração: o saber proveniente de estudos científicos pode ser um fio condutor para resolver mazelas como essa, e eis que surge uma empresa farmacêutica indiana que resolve desenvolver vacinas que não necessitem ser refrigeradas e que suportem ser guardadas por até seis meses a uma temperatura de até 40ºC.
Porém, seria necessário fazer testes para comprovar a eficácia dessas vacinas, e os governos da Índia ou de regiões necessitadas não dispunham do montante financeiro para fazer os testes clínicos e nenhum grande laboratório farmacêutico se dispôs à empreitada que não “daria lucro” a eles.
Foi aí, que outra vez os caminhos do coração abriram a chance de viabilizar a testagem clínica, uma vez que desde 2014 os Médicos sem Fronteiras, uma ONG europeia, realizou testes clínicos com essa vacina indiana na Nigéria em 4.000 crianças e publicou seus resultados: a vacina indiana é tão forte ou mais do que as vacinas existentes no mercado. Como seu custo é bem inferior, isso permite que haja uma imunização em massa nos países pobres.
Com essa experiência, sinto reacender em mim, a chama da esperança de que fazendo parte das lutas por um mundo melhor, e mais justo, precisamos somar todas as nossas áreas de competências e nos juntarmos em grandes coletivos com o propósito de produzirmos soluções, ao invés de nos ‘disfarçarmos’ de grandes estadistas e militantes que têm continuamente usado da necessidade alheia, para enriquecerem à custa de expedientes escusos e corruptos
Maria Eulina a “Mãe” dos desabrigados
A biografia de Maria Eulina Reis da Silva Hilsenbeck, conta de um “insight” do coração que ela teve aos 20 anos, ou seja, 40 anos atrás, quando se percebeu perdida, com frio e fome e dependendo de ‘mãos acolhedoras’ para não morrer, pelas ruas de São Paulo. Segundo relato da própria Maria Eulina e contado por Edison Veiga, nesse mesmo jornal paulistano, no Sábado, 25 de Março de 2017 (Caderno A 16), ela se encontrava “debaixo de uma ponte” e lhe ocorreu o pensamento de que ela só sairia daquela situação se ajudasse outros marginalizados sociais.
A partir desse pensamento nasceu em 1993, seguindo o caminho do coração, o Clube de Mães do Brasil, inspirado na crença de que a mãe sempre deseja o melhor para seu filho, e que em 1996 teve a concessão da União para usar uma casa abandonada chamada de Castelinho, na Rua Apa, zona Central de São Paulo. Devido ao estado de deterioração do imóvel, ela somente podia fazer uso de uma pequena garagem da casa, que em dado momento chegou a abrigar 164 pessoas.
Aos poucos a ONG foi se organizando e vieram as parcerias que fizeram a grande diferença, entre 1999 e 2000, houve um convênio com o SENAI que permitiu a capacitação de 5.000 moradores de rua e também foi iniciado o projeto de reciclagem e de corte e costura, em que resíduos de grandes empresas são transformados em bolsas, sacolas e aventais.
A partir do tombamento do Castelinho em 2004 (13 anos depois de iniciada a sua luta por isso) e sua restauração, que só conseguiu ser viabilizada em 2015, e se encontra em fase de conclusão neste semestre, o Clube das Mães terá um recomeço; e os novos planos da mulher que vê com o coração incluem: estudantes de escolas públicas e imigrantes que precisam de espaço para se desenvolverem.
Acompanhar a saga dessa mulher em sua luta por cuidar dela e do outro, me deixou envolta numa atmosfera de oposição à dor, ao sofrimento e à vitimização, a Maria Eulina não sucumbiu à sua tragédia pessoal e para se superar incluiu o outro. E também me senti estimulada a sair de meus próprios espaços de vitimização e desesperança e a conclamar a todos nós a um movimento de “desesperar jamais”, como cantou tão bem nosso Gonzaguinha.
E para terminar…
Desejo ter molhado um pouco vocês com essas ‘boas águas’, cheias de vida e esperança, e que com elas possamos nos relacionar com mais alegria, esperança e desejo de coconstruir um mundo relacional mais justo e equilibrado.
E isso também depende de nós, como nos declarou Ivan Lins na canção que ele assim intitulou: “Depende de Nós”, e que ela nos inspire a prosseguir pelos caminhos do coração.
Depende de Nós
Ivan Lins
Depende de nós
Quem já foi ou ainda é criança
Que acredita ou tem esperança
Quem faz tudo pra um mundo melhor
Depende de nós
Que o circo esteja armado
Que o palhaço esteja engraçado
Que o riso esteja no ar
Sem que a gente precise sonhar
Que os ventos cantem nos galhos
Que as folhas bebam orvalhos
Que o sol descortine mais as manhãs
Depende de nós
Se este mundo ainda tem jeito
Apesar do que o homem tem feito
Se a vida sobreviverá
Depende de nós
Quem já foi ou ainda é criança
Que acredita ou tem esperança
Quem faz tudo para um mundo melhor