Por Ivelise Fortim de Campos – Psicóloga componente da equipe do NPPI
Luis Fernando, 26 anos, analista de sistemas, pai de dois lindos filhos. Na internet, entretanto, ele é outro. No jogo virtual de RPG do qual participa, ele é um mago poderoso de nome Kestor, líder de um clã chamado “Exército de Vitália”. Ali, ele reúne todo seu exército para as mais diversas missões: A de hoje, por exemplo, é matar um enorme dragão chamado Aglandir, para conseguir sua poderosa espada, a espada curta.
Luciana, 30 anos, economista. A única coisa que o pai estranha nela, é sua paixão por computadores, o que a faz sempre ter muitos equipamentos, cada vez mais modernos e poderosos. De dia, filha de grandes empresários, ela ajuda o pai a gerenciar os negócios da família. Porém, durante toda a madrugada, ela usa o codinome D14N4 (Diana) e é uma defacer (pichadora de sites). Nesta noite, ela ajuda mais três hackers a decifrar os códigos de um importante site, onde eles pretendem deixar a marca do grupo “Hack4life.”
Maria Luisa, 49 anos. Dona de casa, mãe de três adolescentes, cuida da casa e dá suporte aos afazeres do marido, um vendedor que passa grande parte do seu tempo fora de casa. Durante a tarde, quando os filhos estão na escola e na faculdade, ela se transforma. Passar a ser a “Dama do Lotação”, apelido que usa nos bate-papos (uma homenagem a seu filme favorito). Nesses bate-papos na internet, ela libera instintos sexuais que ela mesma desconhecia, antes de entrar nesses ambientes virtuais, dizendo pornografias impensáveis de dizer ao seu marido.
Vitor, 13 anos. Estuda na 7ª serie de um colégio católico, onde tudo lhe parece muito chato. É considerado pelos pais como um menino calado, sério, muito envergonhado, a ponto de não conseguir pedir uma pizza pelo telefone. Os colegas o chamam de nerd, pois ele é bastante inteligente, mas não tem muitos amigos. Na Internet, entretanto, ele é uma celebridade. Seu blog, chamado “InuYasha Forever” (em homenagem ao seu desenho japonês favorito) é um tremendo sucesso na Internet, pois ganhou um dos concursos como melhor blog sobre animês. Por conta disso, o blog tem centenas de acessos por dia, de outros otakus (fãs de desenhos japoneses), que o lêem diariamente, e deixam dezenas de comentários aos seus ótimos textos.
Esses são apenas quatro exemplos, todos fictícios, porém ilustrativos de como hoje se tem usado a Internet para a manutenção de uma vida paralela. Muitos usuários de Internet têm, hoje, uma vida dupla: mantém sua vida cotidiana com família ou no trabalho, cumprindo duas rotinas e obrigações usuais. Porém, mantém também uma outra vida paralela, particular, vivida atrás do monitor do computador, que pode ser tão ou mais real quanto a sua vida cotidiana, com encontros de pessoas de carne e osso.
A vida paralela pode ser vivida na Internet de muitas formas. Ela pode estar totalmente desvinculada da vida presencial e, no caso, apenas os usuários e os companheiros da Internet compartilham dela. É quase como se fosse uma identidade secreta, à moda dos super-heróis. Apenas alguns companheiros sabem desta vida paralela, mas em geral ela é secreta. O segredo é mantido especialmente se esta vida paralela proporciona a liberação de instintos mais primitivos e básicos, como comportamento sexual inadequado ou comportamento agressivo e violento. Vidas criminosas, como as de alguns tipos de hackers, também são escondidas. Quando alguém da família descobre este indivíduo que está por detrás da tela, mas morando na mesma casa, a surpresa é grande. Imagine o susto do vendedor ao se deparar com o conteúdo pornográfico digitado por sua insuspeita esposa! Ou do rico empresário descobrindo que sua filha vandaliza sites à noite, pela internet!
Por outro lado, algumas vidas paralelas podem não estar tão distantes assim da vida presencial. Em comunidades de jogos, como aquela da qual participa nosso citado mago, são comuns os encontros presenciais. Assim, sua esposa e seus filhos sabem que ele “participa de um joguinho e tem uns amigos ai espalhados pelo Brasil”, que podem até mesmo visitar sua casa com freqüência. Apesar de não dar tanta importância ao fato, os pais de nosso amigo blogueiro sabem que ele ganhou um concurso de blogs, e por causa disso pensam em estimulá-lo a ser escritor. Mas, por mais que se esforcem em interagir e participar, os amigos, e a família das pessoas envolvidas nessas comunidades nunca têm a real dimensão do que significa aquela vida virtual. Somente os participantes das comunidades virtuais sabem avaliar a importância e o significado que estas vidas podem adquirir.
Surge então a inevitável pergunta: essa possibilidade que a Internet nos proporciona, de viver vidas paralelas, é boa ou má? Muitos dizem que ter uma vida virtual paralela tem sido nocivo, pois impede a pessoa de ter relacionamentos “reais”, levando-a ao isolamento frente ao computador. Nossa dona de casa pode satisfazer-se unicamente pela internet, e assim prejudicar seriamente seu relacionamento com o marido, pois prefere viver suas fantasias no chat ao invés de se relacionar com ele. De fato isto pode acontecer.
Assim como também pode acontecer das pessoas usarem a Internet como um meio para conhecer indivíduos com interesses semelhantes, mas que não estão necessariamente próximos fisicamente. A exemplo, nosso amigo blogueiro não tem ninguém em sua sala da 7ª serie que conheça o desenho InuYasha e possa conversar com ele. Na Internet, por outro lado, ele tem acesso à grande comunidade de admiradores do desenho. Assim, ainda que por meio virtual, ele não está mais isolado. Desse modo, existe o risco do isolamento, mas vigora também a possibilidade da integração e a abertura da rede de conhecimentos e de seus relacionamentos.
Pensada como um conjunto de redes, cabos e fluxo de dados virtuais, a Internet é inanimada, composta de equipamentos e máquinas sem intenções próprias. Não é boa ou má em si. Constitui-se num meio de comunicação, que traz a possibilidade da vivência de outra vida. Essa possibilidade de ter uma vida paralela, a meu ver, revela o ser humano assim como ele é, com suas qualidades e seus defeitos. Somos nós, seres humanos, que nos utilizamos dela para expressar o melhor e o pior que há em nós: ela não passa de um meio. O que acontece, muitas vezes é que a Internet funciona como um espelho, revelando o lado negro do ser humano, e essa revelação nos assusta muito. Nossa tendência, então, é culpar a Internet, que não passa de um espelho. Na verdade deveríamos nos preocupar com as pessoas, e não com os espelhos e seus reflexos.