por Edson Toledo
“… o único problema do poder é a violência e que a finalidade da violência é o poder…”
Unde malum ou homus violens? – tradução: de onde vem o mal ou o homem violento?
Talvez você ache estranho iniciar este artigo desta forma, principalmente porque escrevei sobre algo que nos sensibiliza e mobiliza a pensar sobre… Refiro-me à imagem de Aylan Shenu, o menino sírio de três anos, morto recentemente, e cujo corpo foi jogado pelas águas na praia de Bodrum – cidade Turca.
Uma reação em cadeia correu instantaneamente mundo afora… Poderia ser mais uma de tantas imagens que vemos nos noticiários, porém o motivo que me chama a atenção: o pequeno Aylan era mais um dentre dezenas de milhares de sírios que se lançaram ao mar para fugir da guerra civil que se arrasta desde 2011 no seu país.
Certamente, quem viu a imagem não deixou de sentir um desconforto com essa violência cotidiana, pois não há palavra, gesto, objeto ou instante que disfarce a indignação e incompreensão de tamanha violência. E olha que não precisamos ir muito longe para depararmos com cenas violentas. Para os anestesiados basta dizer que a história é prodiga em atos violentos, que dispensa enumerá-los.
Testemunhamos a barbárie do extermínio, obcecado pela quantidade, apresenta-se sob a forma de guerra, massacre e genocídio. A guerra, violência institucionalizada, ritualizada pressupões a busca da paz e possui regras e leis.
O massacre traduz por um estrondo selvagem do ódio, do desprezo, das pulsões destrutivas: mata-se, tortura-se, mutila-se… O genocídio é destruição deliberada, sistemática e programada de uma coletividade inteira cujos membros são acusados e tratados como seres “inferiores”.
Podemos entender que o traumatismo do nascimento seja a primeira violência vivida por nós ao ser expulso do meio intrauterino, que é calor e proteção, para um meio exterior, o mundo da dura necessidade.
Mas certamente a infância é palco de múltiplas violências: as provenientes do próprio psiquismo e as exercidas pelo ambiente, entre elas a educação, que se processa sob duas formas de violência: a intelectual e a cultural. A primeira, exercida no processo de transmissão de conhecimentos; a segunda, equipando o sujeito com modelos de comportamento, sensibilidade e compreensão a fim de integrá-lo na sociedade.
Na adolescência, o ser humano experimenta uma violência orgânica, pelas transformações do corpo. Nessa fase, a violência social se manifesta em todos os níveis: repressão e regulação da sexualidade, estruturação da personalidade, pressões educativas e profissionais. A sexualidade, o trabalho e a racionalidade aparecem marcados pelo pecado, a maldição, a interdição e a transgressão.
Sexualidade, trabalho e racionalidade impõem, implacavelmente, a violência de seus determinismos. Sobre esses determinismos, o grupo social enxerta sua própria violência, impondo ou reprimindo escolhas, obrigando a horários, gestos, ritmos, condições de trabalho, e a razão conquistadora pratica o autoritarismo. Encontramos exemplos disso na cultura, não só de massa, mas na elite que impõe certos padrões como sendo verdades absolutas. Podemos entender que certas crenças, e não só as religiosas. Veja alguns exemplos: Homens têm de ser assim; Mulheres não pode fazer aquilo; Isso não é coisa para você; É inadmissível que você durma até essa hora, isso é coisa de vagabundo… Isso vai contra a natureza… Se você não fizer o que eu mandar, você está fora da turma… Não adianta mudar porque sempre foi assim…
Uma constatação é que tentamos expurgar a violência de nós atribuindo-a ao outro, sempre quem inicia é o outro, portanto a culpa é do outro. Roger Dadoun* (filosofo e psicanalista francês) nos esclarece a respeito de sua proposição: o homo violens, ao dizer que o outro está sempre diante de mim e esta presença me “ocupa”, me “olha!”, quer-me “absorver” em sua alteridade, então toda violência é do outro, mas, o outro é violência, pelo simples fato de o outro ser e existir. Para superar isso, é necessário violência, pois, para resistir, o eu precisa aguentar o golpe, e para que isso aconteça, ele deve ser violento. Para quem estranhar este raciocínio, o autor (Daboun) defende isso mesmo, ser violento é uma condição humana, primal e necessária, e faz parte da nossa existência, como ele argumenta: o próprio ato de nascer já é um ato de violência.
Como bem disse Heráclito (filosofo nascido em 535 a.C. em Éfeso/Turquia): ninguém se banha duas vezes no mesmo rio, uma metáfora angustiante para a passagem do tempo que nos conduz à morte, a derradeira e suprema violência infligida à humanidade. Diante desse quadro, nos resta a pergunta: existe um princípio que seja anterior, primeiro, originário, e que sirva de base tanto para a morte como para a violência? A resposta talvez seja o princípio do terror, cuja característica principal, a morte exibe com evidência absoluta, inexorável e aterrorizante: a transformação do ser humano em coisa, marcada pelo processo de cadaverização, imobilização total, petrificação.
Outro aspecto a se considerar é o de que violência e poder estão de tal modo associados que podemos dizer que o único problema do poder é a violência e que a finalidade da violência é o poder. Podemos observar que ao olharmos para a história está repleta de exemplos. O massacre dos índios das Américas pelos espanhóis e portugueses, os mouros em Jerusalém, Hitler e o holocausto. O marido que espanca a esposa por não concordar com sua opinião ou atitude e afirmar o seu papel de cabeça do casal. A Igreja que excomunga quem pratica suicídio.
O totalitarismo é o sistema no qual o exercício do poder consiste numa prática organizada, constante e generalizada da violência.
É o Estado de Direito que retira o homem do estado de natureza e permite ultrapassar a violência original, “natural”, possibilitando ao homem resistir, inventar a humanidade. Ou seja, o Estado de Direito é um conceito que designa qualquer Estado que se aplica a garantir o respeito das liberdades civis, o respeito pelos direitos humanos e pelas garantias fundamentais, através do estabelecimento de uma proteção jurídica. Em um Estado de Direito, as próprias autoridades políticas estão sujeitas ao respeito das regras de direito. Nessa medida o Estado de Direito contém o impulso de ser violento (estado de natureza) da condição humana primal e permite que ele invente formas para exercitar sua humanidade.
Termino com a pergunta feita por Santo Agostinho: unde malum (De onde vem o mal?) quando se questionou sobre a existência do mal no mundo.
Entretanto, ao longo do tempo muitas respostas foram dadas, porém uma que muito me agrada foi a dada por Czeslaw Milosz, poeta polonês e ganhador do Nobel de Literatura em 1980, que disse que “o mal (e o bem) vem do homem”.
*Para saber mais sobre homos violens veja Dadoun R. (trad.) Pilar Ferreira de Carvalho e Carmem de Carvalho Ferreira. Rio de Janeiro: DIFEL, 1998, 112p.