Por Samanta Obadia
Como toda escritora, há momentos em que eu tenho tanto a dizer que não sei por onde começar. Assim eu estava, ao divulgar a propaganda de adoção dos filhotes caninos que estão na casa de meu irmão David. Ao receber meu wpp, Sheyla Callado, amiga de longa data, fez uma correção ao anúncio, para que o termo “vira-lata” fosse substituído por “SRD” (sem raça definida), o qual é politicamente correto.
Naquele exato momento, ao ler a sua mensagem, algo em mim reagiu. Uma lembrança infantil me fez dizer em voz alta para mim mesma: os cãezinhos que oferecemos para doação, lindos e travessos, são vira-latas e não SRD.
Me peguei sorrindo ao lembrar das férias da minha infância em São Lourenço, quando acordava ansiosa e, ainda de pijamas, ia buscar os filhotinhos guardados em ninho de terra, embaixo da casa da vizinha. Eu e meu irmão Ignácio costumávamos passar as férias com meus avós Anna e Armando na casa da tia Maria. Era um tempo delicioso, curtir o friozinho de Minas Gerais, com direito à sopa quente feita pela avó e cobertor na hora de dormir. Para cariocas, isso é raro.
Essa lembrança ativou minha escuta psicanalítica onde as palavras revelam afetos dolorosos e prazerosos. Simbolismos repletos de significados, pausas e silêncios carregados de memórias.
Sinto-me grata por exercer essa profissão e lembro-me das palavras de Jesus, em Mateus 13:16, quando ele diz: “Abençoados são os vossos olhos, porque enxergam; e os vossos ouvidos, porque ouvem”. Assim me sinto quando sou capaz de ouvir os afetos presentes nas palavras, nos silêncios e nos sonhos de meus pacientes. Existem algumas pessoas que desmerecem a função da psicanálise, talvez porque ainda não consigam vê-la.
Ao ler a correção feita por minha amiga, percebi que o termo ‘vira-lata’ dizia muito mais para mim do que apenas a definição da raça de um cão. O som daquelas letras trazia a delícia de uma vivência única de simplicidade, de delicadeza e de vida. Aprendi a ter cuidado com filhotes, de admirar seus primeiros passos e descobertas, de ouvir seus primeiros sons e rir de suas travessuras. Depois fui crescendo, e muitas vezes, acompanhava meus avós Anna e Armando observando da janela os vira-latas que vinham literalmente virar as latas em busca de comida. Minha avó sempre bondosa descia para alimentá-los e, como todos os bons malandros, eles voltavam diariamente no mesmo horário esperando a comida fresca. Aprendi a verdadeira liberdade com aqueles cães alegres e espertos que sabiam colher da vida e dos outros o que era bom.
O termo ‘SRD’ pode ser politicamente correto, mas os deixa indefinidos, pelo menos para mim. De qualquer forma, Sheyla, só tenho a lhe agradecer. Mas meu coração adora nomes, porque eles têm afetos, têm caminhos e histórias que aos poucos multiplico com vocês.