Vive preso ao passado e reclama do presente? É preciso refletir…

por Roberto Goldkorn

Atendi um cliente em Portugal que pelo próprio perfil já merecia um tratamento mais atento. Ele tinha 82 anos, e isso o colocava na faixa rarefeita dos meus raros clientes bem idosos.

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Sua assinatura era tremida e desorganizada, como se poderia esperar de um idoso que tenha enfrentado problemas graves de saúde ao longo da vida.

Mas não era só isso. Quando eu lhe dei um espaço para falar, ele iniciou um discurso daqueles que quando começam, a gente já sabe que se não for freado, vai longe. “Em 1948, quando eu ainda estava em África?” Como eu estava com tempo deixei que ele desenvolvesse por mais alguns minutos sua história.

Pela assinatura já sabia que essa seria uma narrativa confusa, quase hermética e foi exatamente isso que aconteceu.

Ele contou várias histórias entrelaçadas e incoerentes nas quais era vítima de traições, enganos e maldades. Mas sempre que eu o interrompia para tentar esclarecer pontos obscuros, ele tentava ser intencionalmente confuso e reticente, como se fosse possível ocultar dos meus olhos e ouvidos atentos o nexo integral de seu “causo”.

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O meu cliente faz parte de um grupo de pessoas altamente neuróticas a quem eu chamo de “históricas”.

Essas pessoas se atêm vigorosamente ao passado para tentar explicar seu presente infeliz.

Qualquer tentativa de diálogo começa sempre com um digressão, na sua grande maioria uma revisitação convenientemente editada de seu passado.

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Algumas fazem isso como um esforço genuíno para entender o que deu errado. Outras apresentam suas histórias para tentar deseperadamente a absolvição: alguém me enganou; tive muito azar; fui vítima da minha própria família; quando eu era bem pequeno sofri abuso sexual; meus sócios me roubaram… etc, etc.

Quando porém se examina com rigor esses discursos eles pecam por duas falhas básicas: são neuroticamente repetitivos e têm sempre algumas pontas soltas.

Quando eu era pequeno lá no Rio de Janeiro a nata da malandragem sempre me dizia assim que eu começava com meus discursos justificativos: “Desculpa de aleijado é muleta!” Nunca me esqueci disso.

Depois na faculdade de letras aprendi com a inesquecível Samira Mesquita que não se pode (não se deve) tentar explicar a obra de uma autor com base na sua biografia. Uma coisa é uma coisa e outra coisa é a vida real.

Esse recurso escapista a um passado, de certa forma mítico, onde se deveria encontrar a origem de todo o “mal” presente, é a face da doença se manifestando.

Não ajuda ao historiador porque não se pode mudar o que já aconteceu. Além disso lhe dá uma falsa sensação de catarse, de purgação, de absolvição pela tese da “vítima sem possibilidade de defesa”.

As “desculpas de aleijado” são perniciosas e doentias porque impedem que o seu criador tome consciência da real face de seus defeitos e assim os possa corrigir.

Ele se anestesia como se sorvesse um copo cheio de absinto com a sua história de vítima, convence alguns incautos e se sente redimido por alguns momentos. Como toda droga uma hora a realidade recupera o terreno perdido.

A “vitória” do tóxico é sempre efêmera.

Por isso o mecanismo se transforma em neurose, precisa ser repetido, e repetido. Enquanto isso na sala de justiça, nada se faz de efetivo para mudar a situação infelicitante presente.

Quando eu era pequeno (olha a história aí), as meninas tinham uma brincadeira de pegar um objeto qualquer entregar a outra dizendo um mantra terrível: “passe adiante senão vira elefante!”

É o que fazem os neuróticos historiadores: passam adiante seus conflitos e fraquezas reais localizando suas origens num passado nebuloso (onde sempre foram vítimas) para além das lentes verificadoras da verdade.

Para o velho alfacinha, meu remédio foi fazê-lo repetir cada vez que ele teimava em voltar ao seu passado de brumas: “daqui para frente!” acompanhado de um gesto de mão com se estivesse dando uma cutelada para cortar esse passado apodrecido.

No final já exausto de tentar me enrolar voltando ao seu livro de memórias turvas, se despediu de mim com sorriso triste e voz trêmula: “Daqui pra frente!” com aquele sotaque que eu aprendi a gostar.

E lá se foi ele cruzando a praça observado pela estátua majestosa do Marquês de Pombal.