por Regina Wielenska
Um caro amigo me enviou um vídeo. Não teve jeito, senti-me imediatamente compelida a escrever esta crônica.
Peço ao meu leitor que tenha paciência de clicar nesse link aqui para, antes de ler o texto abaixo, ter contato inicialmente, pelas vias da emoção, com o material sobre o qual estou a falar. Pode ver o vídeo agora, eu lhe espero aqui, sem pretensão de fugir.
Não sei como você sentiu essa apresentação. Para mim, foi uma experiência no estilo “triplo uau”. Meu coração acompanhou em tensão a arte desse homem que transformou fragmentos polidos de madeira em partes de um improvável móbile de dimensões desmedidas. Assim surgiu um organismo complexo, que se integrou ao corpo do sujeito, seu arquiteto e suporte vivo. Nasceu um móbile gigante, embora delicado, cheio de vida e mistério.
Entendi que o artista construiu um ensaio sobre a vida. Tal como a apresentação, viver pode ser fascinante, belo, difícil, exige empenho e precisão, além de delicadeza e foco. Na nossa vida nada permanece igual, intocável, inerte por muito tempo. E cada novo elemento que surge em cena, exige da estrutura já formada que se reorganize de um jeito ligeiramente diferente. Não se aceita a rigidez, é mandatório balançar ao sabor das novidades e dos ventos. Isto tudo para arte de fazer móbiles ou de nadar nas águas da existência. Quem carece de flexibilidade fica amarrado na vida, nada alcança, nada realiza.
Durante a apresentação, o público tinha reações que foram capturadas muito bem: espanto, assombro, medo de que aquilo desabasse, incredulidade.
Enquanto se dedicava à sua arte, o moço pareceu desligado das emoções alheias. Para ele, aquela era apenas hora de fundir-se, como criador, à sua xilocriatura. Atenção plena, assegurando o foco onde lhe era essencial. Quem vai bater pênalti não pode ficar de ouvidos atentos às vaias do time adversário, ou sob controle da torcida que lhe sustenta. Ao contrário: imbuído de um claro propósito, o jeito é seguir com atenção na tarefa à qual se propôs executar, e manter a serenidade.
Vocês observaram a importância do respirar?
Profundo, compassado, pleno, ar que entra, ar que sai, num eterno fluir. Enquanto isso, o móbile balança delicadamente. Ele não é estátua, precisa do movimento para ter sentido na vida. Desconstruo a conhecida afirmação ao dizer que “hay que tener músculos, pero sin perder la ternura jamás”. A força física é usada sem desperdício, na exata medida da necessidade. Mas certamente existiu um disciplinado treino de força, ele foi parte da estrada que o qualificou para atingir tão belo desempenho no palco de um festival de circo e artes do corpo.
Nada surge do nada. As peças de madeira exigiram criterioso fabrico. Os gestos, lentos e exatos foram, em sua forma final, treinados até à exaustão. A música escolhida com afinco. Coisas difíceis exigem empenho, ninguém disse que na vida tudo é fácil, banal ou pode ser conduzido com leviandade.
O que me deixou fascinada foi o momento que antecede o final: o artista parece se afastar de sua obra, em passos de extraordinária beleza, então mirou o móbile em perspectiva e, num rompante de coragem, desfez a escultura e amorosamente testemunhou seu desmembramento, seu retorno ao desarranjo de vertebrais peças, similar àquele que deu origem à apresentação. Este trecho me ensinou sobre o desapego, a intemporalidade das conquistas, sobre a imperiosa coragem de se refazer, sobre ter confiança em si, e não nos objetos conquistados a duras penas. Parece-nos ensinar também sobre a modéstia, ele fez o que precisava, depois desfaz seu trabalho, colhe os frutos com discrição e se afasta.
Há alguns anos, na São Paulo Fashion Week, o estilista Jum Nakao fez extraordinárias esculturas-vestimentas, inteiramente de papel. Trabalho de rara beleza, insano até. Ao final do desfile, as modelos rasgavam suas peças e, de todo aquele esforço, restou muito papel picado e imagens em vídeo. E também, o mais importante: as emoções de quem fez, viveu e testemunhou tudo aquilo.
Que esse número circense, refinado e conciso, nos ensine a viver melhor.