por Monica Aiub
Você é capaz de compreender o significado de uma palavra, um gesto, um silêncio, uma ausência, um presente, uma flor, um olhar, uma cor ou um suspiro? E de tantas outras marcas que encontramos em nosso cotidiano? E de tantos e quantos detalhes que utilizamos para construir nossas formas de linguagem?
Certa vez atendi um partilhante (paciente) que fazia a análise sintática e semântica das falas das pessoas com quem se relacionava para compreender adequadamente o que estavam dizendo. Buscava o significado das palavras no dicionário para maior clareza e, ainda assim, encontrava inúmeros e graves problemas de compreensão. Sua conclusão mais contundente foi a de que as pessoas são muito confusas, não têm lógica, ou desconhecem completamente as regras gramaticais.
Também atendi uma pessoa que fazia uso de teorias interpretativas muitíssimo estudadas, mas essas não se revelavam eficazes para a compreensão de muitos casos. Recordo-me de uma moça que ficava atrapalhada com as ironias, ou com as piadas, pois interpretava tudo “literalmente”.
Tratei em outro texto (clique aqui) sobre algumas questões da linguagem, como a metáfora, o significado literal, e a importância de perguntarmos ao outro “o que você quer dizer com isso?” para interpretarmos adequadamente uma forma de linguagem.
Gostaria de pontuar, aqui, outra questão: ainda que perguntemos ao outro o que ele quer dizer com o que nos diz (seja dito em palavras, gestos, ações, silêncios, etc.), como significamos as formas como nos responde? O que nos garante que compreendemos o “dito” exatamente com o mesmo significado a partir do qual foi expresso?
Uma partilhante, descrevendo um de seus relacionamentos afetivos, disse perguntar ao namorado o que ele desejava ao aproximar-se dela, ao que ele respondeu: “utilizar seu cartão de crédito”. Ao ouvir isso, ela compreendeu como uma brincadeira. Era óbvio a ela que, se ele desejasse realmente isso, não diria. Considerando-o um brincalhão, interpretou sua fala como: “gosto de sua companhia, quero estar ao seu lado”, e prosseguiu naquele início de relacionamento. Mais adiante, constatou que, de fato, o namorado havia se aproximado para “usar seu cartão de crédito”, literalmente. Em seu relato ela afirma que nem pôde reclamar, pois ele havia sido sincero, e ela havia concordado com isso. Mas também relatou que, se tivesse considerado a afirmação dele como uma fala literal, e não como uma brincadeira, ela não teria iniciado o relacionamento, e teria evitado muitos problemas pelos quais passou durante longos períodos de sua história.
Como saber se a forma como significamos a fala do outro corresponde ao que foi expresso? Wittgenstein, no livro Investigações Filosóficas, nos ensina que o significado de uma palavra está em seu uso, que compreendemos o significado das expressões a partir dos contextos nos quais aparecem, e a partir dos jogos de linguagem constituídos entre os falantes.
Para que consigamos pesquisar esses significados em filosofia clínica, lançamos mão de vários recursos extraídos de metodologias filosóficas. O primeiro deles são os Exames Categoriais (veja a descrição da metodologia no artigo Como funciona a prática da filosofia clínica (clique aqui). Com eles é possível conhecer os contextos a partir dos quais o partilhante se expressa. Além disso, há todo um estudo dos jogos de linguagem da pessoa, a partir da análise lógica e linguística de suas expressões, devidamente contextualizadas. Para maior clareza, há, ainda, o processo epistemológico de pesquisa dos significados, perguntando diretamente: “o que significa isto?”, “quando você afirma ‘isto’, o que ‘isto’ quer dizer?”, entre outras perguntas. Ainda assim, há imprecisões.
Background
John Searle, no livro A redescoberta da mente, aponta para a existência do que ele denomina Background (esse conceito é trabalhado por ele em vários de seus livros, e recebe diferentes significações em cada um deles, por tratar-se de um estudo em constante revisão. Utilizarei aqui o conceito conforme exposto no livro citado). Em Intencionalidade, ele apresenta o conceito de Background muito próximo aos contextos propostos por Wittgenstein, mas em A redescoberta da mente, nos provoca a pensar por que pessoas, num mesmo contexto, diante das mesmas experiências, significam diferentemente a mesma expressão.
Num primeiro momento poderíamos recorrer ao que já apresentamos aqui diversas vezes, e é o caminho básico trilhado em filosofia clínica: as citadas pessoas possuem diferentes histórias de vida, observam a expressão a partir de distintas perspectivas, ocupam lugares existenciais diferentes, a partir dos quais interpretam o vivido. Vários trabalhos em hermenêutica poderiam ser citados para exemplificar tais diferenças: Heidegger em Ser e Tempo; Gadamer, em Verdade e método; Coreth, em Questões fundamentais de hermenêutica; Ricoeur em Teoria da Interpretação são alguns dos autores que abordam tais possibilidades.
Contudo, o caminho escolhido por Searle não aponta para o sentido indicado por tais autores, ele prefere se debruçar sobre a neurociência e pesquisar capacidades singulares que compõem o Background. Ele fala de “capacidades, aptidões e know-how geral que possibilitam que nossos estados mentais atuem”, e apresenta como motivo para interpretarmos diferentemente as mesmas sentenças – sem questões metafóricas, ambíguas ou de atos de fala indiretos –, a atuação dessas capacidades de Background determinando as interpretações diferentes para uma mesma expressão, ainda que o significado literal dessa seja o mesmo.
Assim, “usar seu cartão de crédito” é uma expressão que possui o mesmo significado literal em todos os contextos vividos pela partilhante citada, mas ela interpretou de outra maneira por ter um conjunto de capacidades para criar estados mentais, tais como a crença dessa fala ser uma brincadeira e poder receber outros significados; ainda que, ao perguntar ao rapaz sobre o significado de sua afirmação, esse o reafirmasse, indicando as compras que necessitava fazer.
Searle destaca que “o Background não ameaça nossa convicção de realismo externo, ou a concepção de verdade como correspondência, ou a possibilidade de clareza de comunicação, ou a possibilidade de lógica” (1997:274). Afirma ele que “o mundo real não está nem aí para o modo como o representamos” (idem). Ou seja, há uma realidade, e se a interpretamos de maneira própria, não condizente com suas condições de satisfação, sofreremos as consequências derivadas de nossas interpretações, como a partilhante que viveu situações que poderiam ser evitadas caso compreendesse o que lhe foi dito literalmente.
Por outro lado, a forma como interpretamos as expressões que nos chegam, nos provocam a certos posicionamentos diante da realidade, e tais posicionamentos podem ser motivo de alteração dessa realidade. Qual a medida? Como podemos interpretar o mundo e nos posicionar diante dele?
Searle considera o Background como capacidades mentais, disposições, atitudes, modos de comportamento, etc. que somente são manifestos diante de uma ação, uma percepção, um pensamento, ou seja, estados intencionais. Assim, conhecer nossas capacidades e seus resultantes, conhecer nossos estados intencionais que provocam tais capacidades, em outras palavras, conhecer nossos processos de significação, pode ser muito útil para avaliarmos nossas formas de interpretação do mundo, nossas maneiras de significar o vivido e suas relações com o “mundo real”. É isto o que pesquisamos, em filosofia clínica, no tópico da Estrutura de Pensamento (ver texto Entenda a Estrutura de Pensamento (clique aqui) denominado Significado.
Você já observou os processos que utiliza para interpretar o que o outro lhe diz? Para ler os sinais apresentados em seu entorno? Geralmente, a maneira como significa o “mundo” encontra correspondência com o que acontece em sua vida? Você já reparou se isso interfere na forma como você se posiciona diante da vida?
Referências Bibliográficas:
CORETH, Emerich. Questões fundamentais de hermenêutica. São Paulo: EPU, 1973.
GADAMER, Hans Georg. Verdade e Método: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes, 2003.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 1988.
RICOEUR, Paul. Teoria da Interpretação. Lisboa: Ed. 70, 2000.
SEARLE, John. Intencionalidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
_____. A redescoberta da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. São Paulo: Abril Cultural, 1974.