por Roberto Goldkorn
Tive o privilégio de conviver por alguns meses com a escritora Clarice Lispector. Na faculdade de letras nos anos sessenta eu estudei a sua obra e me tornei um grande admirador. Não poderia imaginar que alguns anos depois chegaria a ser seu confidente e estaria tão perto de sua intimidade, pois para mim Clarice era muito mais um mito que um ser humano. À medida que a nossa convivência fluía, percebi que ela também se via como um mito e tornara-se escrava desse programa.
Clarice vivia num mundo penumbroso, soturno, as janelas de seu apartamento na praia de Copacabana sempre fechadas, a casa iluminada por velas dia e noite, a fumaça dos cigarros acendidos um atrás do outro e o traje negro constante compunham o cenário que alimentava o mito. Ela conseguia criar um microclima de angústia e opressão ao seu redor e sofria como o poeta que finge ser a dor que deveras sente. Tentei em vão romper com aquela encenação irreal/real e levá-la para passear na praia, tomar água de coco, abrir-se para a alegria de viver, iniciativa que ela rejeitou com veemência e horror. Alegava em defesa de seu mundo sombrio que se não estivesse imersa naquele cenário, não conseguiria criar. Na minha ingenuidade/fragilidade de vinte e tantos anos, acabei fugindo dela, pois percebi que seria impossível trazê-la para o meu mundo solar, e ainda corria o risco de ser arrastado para o seu mundo de filme noir.
Clarice preferiu a mitologia do seu papel (de escritora), a verdade simples da vida cotidiana. Ela preferia uma fantasia útil que alimentava o mito, a uma prosaica realidade de comprar pão na padaria e pagar conta no banco, como se isso fosse esterilizar a sua fonte de criação literária. Ela achava que só havia duas alternativas: manter-se lunar em seu castelo mal-assombrado e continuar criando genialmente, ou ir para a luz, tornar-se prosaica e perder a mão. Infelizmente esse era um falso dilema, mas também ele (o dilema) era parte integrante desse enredo sinistro.
Muitos vivem um personagem e esquecem-se de si
Conheço muita gente que criou ou permitiu que se criasse um personagem (e com ele um cenário, maquiagem, figurino, etc) e esqueceu a pessoa, a face original. Empresários bem-sucedidos acreditam firmemente que são mesmo empresários bem-sucedidos (e só isso), e vivem tentando expurgar o homem comum que existe neles. Vivem de acordo com um script que acreditam ter sido escrito para eles, repetem as falas prontas, fazem poses para as câmeras mesmo que essas sejam os olhos de seus filhos. O resultado em forma de lucros e status, reforça a idéia de que estão certos, da mesma forma que o sucesso de Clarice reforçava a sua convicção de que havia tomado o único caminho possível. O grande mestre Jung dizia com muita sabedoria: aprendo mais com meus fracassos que com meus sucessos terapêuticos. Mas mesmo o fracasso desses personagens, muitas vezes não os desperta desse transe. Conheci pessoas que foram seqüestradas e passaram um bom tempo em sofrimento nas mãos dos seus algozes. Para a maioria isso seria suficiente para representar um PARE! Retroceda! Reavalie a sua vida, os seus valores, etc., mas nada aconteceu. Passado o susto, voltam a sua vida anterior, fazendo tudo igual, sem nem ao menos tentar entender o conteúdo dessa mensagem.
Muitas pessoas que conheço levam o personagem para a cama, e nem mesmo sabem que o estão fazendo. Deixam em seus amigos e parentes a sensação de que algo está falso, artificial, um sorriso, talvez , ou uma bolsa de marca, falsificada mas que compõe o figurino do personagem. Vivem uma existência cenográfica, falam discursos criados por outros, que aparentemente lhes servem, repetem gestos que aprenderam em cursos de fim de semana e a cada dia vão se distanciando de si mesmos.
Lembro-me de uma historinha que meu antigo mestre contava. Foi convocado a assistir um famoso político que estava em seu leito de morte. Ao chegar lá o moribundo agarrou-lhe as mãos e disse: “Mestre vou morrer, como posso me redimir, como posso me livrar da minha carga?”
Meu mestre disse em tom bem casual: “Não, você não vai morrer não, asseguro-lhe que não vai morrer.”
O doente já sentindo a vida esvair-se reagiu entre incrédulo e aborrecido: “Claro que vou morrer, mestre. Os médicos disseram que tenho apenas algumas horas de vida. Sinto que cheguei ao fim.”
“Não vai não. Você não vai morrer!”
O quase defunto ainda teve forças para se irritar e recuperando por instantes a sua antiga arrogância disse: “Como você é insolente. Claro que vou morrer como pode afirmar o contrário?”
“Simples, meu caro. Só morre quem está vivo. Você não viveu, você se escondeu por trás de máscaras, você fugiu de todas as oportunidades de encarar de frente o seu verdadeiro eu, você mentiu, falsificou, encenou, construiu um mundo de fantasia ao seu redor para fugir da realidade e não ter de modificá-la. Você se acovardou diante das grandes decisões de sua vida, evitou as escolhas, passou adiante, lavou sempre as mãos. Você não viveu verdadeiramente, como então pode morrer?”
O velho político fechou os olhos e por alguns instantes passou toda a sua vida na tela da sua mente. O mestre viu duas lágrimas escorrerem pela sua face enrugada e pálida. Quando voltou a abrir os olhos, havia ali um outro brilho, uma expressão completamente diferente, nova, humana, real (para um mestre isso era perceptível).
Com um sorriso benevolente, o mestre segurou as mãos do político, e disse: “Agora sim, meu amigo. Você já pode morrer em paz.”