por Aurea Afonso Caetano
Estar em relação é sempre um convite a misturas e indiscriminações, não há como não ser assim. Entre mim e o outro há uma zona cinzenta ou pouco iluminada na qual aproximações, trocas e embates acontecem.
Como saber tudo de mim mesmo, como ter certeza de quem sou e portanto, de quem é o outro? Utopia iluminista?
Estar apropriado de quem sou não quer dizer saber “com certeza” quem sou. Muitas das grandes discussões entre pares começam a partir deste lugar. Dizer de minha responsabilidade, do que de fato quis dizer é falar meia-verdade. Posso contar a respeito de meu desejo consciente, posso explicar meus motivos conhecidos, mas não posso nunca garantir que são os únicos ou os verdadeiros.
E o que é verdadeiro afinal? O que conhecemos de nós mesmos é apenas parte de um todo maior. Como dissemos no texto anterior (veja aqui), o ego, a parte a que me refiro quando falo de mim mesmo é o centro daquilo que chamamos consciência. Falar do que sei é de certa forma falar do que este eu conhece acerca de si mesmo mas… e o “resto”?
Somos muito mais do que aquilo que conhecemos a nosso respeito, do que esse ego, e parte dos conteúdos desconhecidos é tocada ou iluminada em nossas relações mais próximas, ou em todas as relações significativas. Daí a ventura e a desventura desse estar no mundo.
A zona cinzenta, como nomeei acima, é uma metáfora para o espaço pouco iluminado no qual não sei bem o que acontece. O perigo é fazer de conta que não existe esse espaço, que há um limite claro e preciso no qual caminho pela vida e seguir sem reconhecer a possibilidade de que o outro esteja iluminando aspectos meus que desconheço.
Explico melhor: muitas brigas acontecem quando o outro diz ter ouvido ou entendido algo diferente daquilo que eu quis dizer. Quando a questão é de ordem prática ou pontual fica mais fácil desfazer a confusão; discussões podem não ir adiante quando é possível num diálogo franco usar de clareza para iluminar a zona cinzenta. Mas isso não é suficiente, conteúdos menos claros dessa zona podem se fazer mais presentes. Por exemplo, quando minha expressão corporal é diferente da expressão verbal, quando quero dizer algo num tom mas a forma é diferente do conteúdo e por aí, muitas coisas podem acontecer. Por exemplo, quando expresso algo diferente do que foi dito, posso confundir o outro, provocando nele uma dúvida em relação às minhas reais intenções.
Exemplo: Meu parceiro me pergunta: – Vamos ao cinema? Demoro um pouco a responder, dou uma titubeada e digo sim, claro. Um olhar atento (ou desconfiado) poderá perceber ou imaginar em mim uma hesitação e compreender isso como uma recusa e não como uma aceitação.
Insisto em dizer que é neste espaço de diferença e muitas vezes atrito que pode surgir a partir da relação com o outro o novo em mim. Se entro em uma relação com limites estabelecidos, lançando luz nos contornos e tentando eliminar a zona cinzenta é provável que nada mude em mim. É exatamente no espaço entre o que sei e o que o outro me mostra que reside a possibilidade de crescimento. Saber quem sou eu, mas saber também que não sou apenas isso, estar apropriada da possibilidade deste trânsito é a única verdadeira forma de desenvolvimento pessoal. E, é esse o verdadeiro segredo da vida, não?