O que o uso do ferro na construção civil pode revelar sobre você?

Embora a tecnologia para cortar o ferro na construção tenha evoluído, a qualificação da mão de obra não acompanhou essa inovação. Quais as consequências disso? O que isso pode revelar sobre você?   

Algumas situações sociais particulares podem nos dizer muito acerca da sociedade da qual elas fazem parte. Quando prestamos atenção ao setor produtivo no Brasil, vemos os economistas afirmarem que não faltam empregos. O que, segundo eles, falta é qualificação da mão de obra. Curiosamente, como sou um observador, já há muito tempo noto que essa afirmação não se altera: ela é refeita sistematicamente ao longo do tempo.

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Por uma série de razões pessoais, mudei de residência várias vezes, sempre no Brasil. Isso me obrigou a construir casas aqui e ali, fornecendo uma boa experiência de como funciona a mentalidade e os sentimentos da parte da população que se ocupa com a construção civil.

Uma das coisas que mais chama a atenção é a relação com o conhecimento e com a tecnologia. Ao contrário de vários países que exigem cursos de qualificação para o exercício profissional, no Brasil, qualquer um pode exercer a profissão de pedreiro, sem qualquer necessidade de comprovação. Assim, o processo de formação limita-se à certa experiência no ramo, em geral na ocupação de ajudante. Quem tem talento ou coragem migra de condição de trabalho, sem nenhuma necessidade de comprovação de ter, de fato, adquirido novos conhecimentos e habilidades.

Em função disso, as inovações introduzidas na construção civil nas últimas décadas não são acompanhadas de uma qualificação da mão de obra. Então, as novidades tecnológicas são assimiladas dentro de um padrão preexistente de conhecimentos. Isso propicia situações inusitadas em que o antigo absorve a novidade, alterando seu sentido original.

Um exemplo é o uso de ferro na construção. Obviamente, seu uso implica uma série de alterações de comportamento e de concepção acerca do processo construtivo na medida em que ele impacta tudo à sua volta. Porém, isso não ocorreu. As alterações introduzidas com o uso do ferro são obstaculizadas e ele passa a ser utilizado dentro dos antigos padrões construtivos. Um exemplo disso é poder verificar como vigotas para laje (compostas de ferro e concreto pré-moldado) são cortadas a golpes de martelo – e não com o uso de uma ferramenta de corte apropriada, como uma serra-mármore.

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O ferro é subutilizado como recurso para travamento de caixaria. Há vários sistemas de travamento reaproveitados, seguros e fáceis de manipular. Porém, há uma preferência pelo desperdício do ferro que, após seu uso, fica preso nas colunas e vigas sem exercer nenhuma função estrutural. Nesse caso, acredito que se opera uma espécie de vingança contra o material na medida em que ele é destinado a uma função diferente da original – além de secundária e descartável. Ou seja, a durabilidade e a resistência do ferro são submetidos ao descarte e ao uso pontual sem qualquer proveito durável.

Você é mais resistente do que o ferro?

Eu poderia citar vários exemplos da mesma natureza. Neles se opera uma absorção de inovações tecnológicas sem comprometer nada da estrutura mental e sentimental preexistente. A estratégia me parece evidente: a mão de obra não tem se alterado e lança mão das novidades para permanecer sendo o que era. Não é ocasional que alguém já tenha referido ao Brasil como um país que muda para permanecer igual.

Os pedreiros e ajudantes utilizam-se dos novos materiais da construção civil para permanecerem iguais a eles. Ou seja, se trata claramente de uma estratégia de resistência àquilo que o progresso exige. Afinal, para que esse possa existir é necessário que as pessoas se tornem diferentes do que são.

Fazer o quê se as pessoas são mais resistentes que o ferro? Alguns têm defendido o uso da violência e do extermínio para a promoção do progresso. Se o progresso realmente exige morte e destruição, talvez devamos começar a suspeitar dele. Talvez as funções tecnológicas introduzidas pelo ferro não exijam, afinal, que nos tornemos diferentes do que temos sido. Talvez possamos apenas gozar o que já somos sem pretender sermos melhores. Que o digam os pedreiros e os ajudantes!

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Ronie Alexsandro Teles da Silveira é professor de filosofia e trabalha na Universidade Federal do Sul da Bahia. Mais informações: https://roniefilosofia.wixsite.com/ronie