Somos humanos ou nos tornamos humanos? Entenda por que as respostas dessas perguntas é decorrente de uma longa negociação com o nosso ambiente.
Em função da hegemonia planetária que estabelecemos, tendemos a nos esquecer que somos uma espécie de seres vivos entre outras tantas. Na verdade, em geral sequer pensamos em nossa condição biológica. Independentemente de quanto essa condição nos afeta e age sobre nós e nosso comportamento, o fato é que somos seres biológicos.
Aquilo que somos possui relações estreitas com essa condição. Afinal, nos tornamos o que somos através de uma longa negociação com o nosso ambiente. Sabemos que se ele fosse radicalmente diferente, não seríamos como somos. Por exemplo, se a gravidade do nosso planeta fosse dez vezes maior do que é, certamente nossa forma física seria diferente, talvez um tanto quanto achatada sobre a superfície da Terra.
Não parece restar nenhuma dúvida de que não somos humanos, mas nos tornamos humanos em função das negociações que estabelecemos com nosso ambiente. Não me refiro somente às condições naturais – como relevo e clima – mas também a todas as condições que chamamos de culturais, aquelas que surgiram da interferência do próprio homem e que também nos limitam.
O que significa ser humano?
As condições externas, vamos chamá-las assim, sempre exigiram o estabelecimento de uma forma de diálogo. Isto é, elas sempre se apresentaram como limitações a que deveríamos prestar atenção sob pena de enormes prejuízos e até da própria extinção. Para se alimentar, é necessário descobrir como obter alimentos dentro das condições existentes. Não é uma alternativa razoável tentar obter alimentos sem considerar as condições externas. O que nos tornamos é uma função dessas condições. As soluções que criamos são soluções para tais condições. Nos tornamos capazes de dar resposta a elas e isso é o que significa ser humano.
Entretanto, vivemos em uma situação em que praticamente não dependemos de tais condições externas. Nossa capacidade de diálogo têm sido prejudicada pela nossa condição quase omnipotente (o que pode tudo). Quando não há mais nenhuma oposição considerável, quando as condições externas não são mais robustas, o diálogo se interrompe. As negociações deixam de fazer sentido na medida em que seu antagonista não é mais capaz de propor uma limitação real. Creio que essa é uma boa caracterização de nossa condição de vida atual, enquanto uma espécie: os outros se renderam.
O poder de negociação do ser humano
O nosso poder de negociação com relação às condições externas tornou-se imenso. De tal maneira que não faz mais sentido falar em um diálogo. Estamos nos movendo baseados em uma relação sem interlocutor, nos comunicamos exclusivamente com nós mesmos, no interior de nossa espécie. Os outros se calaram.
Não há mais algo de estranho a ser vencido. Não há mais um poder reconhecidamente robusto para criar limitações a nossas atividades e interpor condições a nossos desejos. O processo de comunicação se desenrola no interior de nossa própria espécie, como um monólogo. Estamos sós no mundo.
A energia que antes era despendida no processo de negociação com os outros não necessita mais ser gasta com esse propósito, porque tudo de relevante se passa no interior da própria espécie. Como não há oposição, não é mais necessário que nos preparemos para o enfrentamento ou o combate – para as negociações que já não ocorrem mais. Nossas forças interiores podem ser desconectadas porque não há mais outros. Se a alteridade sempre foi uma condição da existência humana, se os outros sempre foram importantes por estabelecerem limitações e desafios, todos eles não existem mais ou simplesmente não falam mais para nós.
Essa situação certamente pode ser definida como um rebaixamento geral de nossas disposições combativas, um desligamento de nossas energias reativas. Trata-se de uma fragilização geral do nosso tônus existencial que não requer mais concentração nem dispêndio. A partir de agora somos uma espécie solitária cuja energia só é gasta consigo mesma. Talvez por isso, estejamos nos lançando em busca de outros mundos, à procura de novos outros.
Sair pelo universo em direção à vida extraterrestre é um gesto de pura melancolia, é procurar as condições externas do nosso passado – que nos fez como somos. Ir em direção ao futuro da exploração do universo é o mesmo que tentar resgatar nossa fragilidade perdida. Hoje, nossa espécie é uma tirana solitária sonhando com os bons tempos em que lutava por sua própria vida. Talvez não estejamos preparados para a solidão.