Alcoólicos Anônimos: como a filosofia do A.A ajuda a largar o álcool

Alcoólicos Anônimos (A.A): esse notório grupo de mútua ajuda, com seus 12 passos, a “Oração da Serenidade”, e seus dois pilares, (humildade  e gratidão), auxilia muitas pessoas a largar o álcool em várias partes do planeta

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“Frequento o A.A há quase 4 anos, larguei o álcool desde então.  Mas vejo que o índice de recaídas é muito alto. Estou pensando em deixar de ir lá, pois não acho que seja tão efetivo já há algum tempo, e sinto-me bem tranquilo em relação a isso. Inclusive, acho que eles acertam ao falar de um dia de cada vez e sobre a oração da serenidade: “Concedei-me, Senhor, a serenidade necessária para aceitar as coisas que não posso modificar, coragem para modificar as que posso, e sabedoria para distinguir umas das outras.” Mas na minha opinião a falha do programa está num ponto específico: a adicção é sempre colocada como maior que o sujeito, quando, na verdade, o sujeito deveria ser “aumentando”, tratado como uma pessoa “Grande”, que tem o “Poder”. Acho que falta essa postura no A.A e acho que muitos deles deixam de ser viciados em álcool para serem viciados em AA. Gostaria de ter um retorno (aval) sobre esta minha opinião, se estou certo. Obrigado.”

Resposta: O consumo inadequado de bebidas alcoólicas tem sido fonte de inúmeros problemas em diferentes países ao redor do mundo, contribuindo para significativos gravames aos sistemas de saúde e de Justiça. No geral, as taxas de prevalência da síndrome de dependência alcoólica ao longo da vida são estimadas em torno de 11% da população geral. E essa síndrome é caracterizada, basicamente, por quatro principais sintomas:

  1. Perda do controle diante do consumo das bebidas alcoólicas;
  2. Sintomas e sinais de síndrome de abstinência e de tolerância;
  3. Fissura intensa pelo álcool;
  4. Prejuízos sociais, econômicos, laborais, educacionais, familiares etc.

Alcoolismo é causado por vários fatores

Não há uma única e conhecida causa do alcoolismo, uma vez que vários fatores internos e externos desempenham notáveis papeis no seu aparecimento e desenvolvimento. Fatores genéticos, problemas mentais associados (ansiedade, depressão, transtornos da personalidade), baixa autoestima, fatores sociais (pressão dos pares, ampla disponibilidade de álcool, cultura, aceitação social), conflitos pessoais e interpessoais não resolvidos, estilo de vida contribuem de formas diferentes, sobrepesando as características de cada pessoa, para a entrada nesse campo escavacado.

Apesar da multiplicidade dos fatores de risco implicados no aparecimento e no desenvolvimento da síndrome de dependência de álcool, não há como, nos tempos atuais, descartar o aspecto genético. A síndrome de dependência de álcool tem sido apontada como poligênica e pleiotrópica. Ou seja, grosso modo, diferentes genes interagem para a maior vulnerabilidade individual no desenvolvimento da doença.

Estudos mais antigos, realizados no final da década de ’90, já sugeriam, entre gêmeos monozigóticos e dizigóticos, que a síndrome de dependência de álcool podia ser atribuída a fatores genéticos (na razão de 2/3) e a fatores ambientais (na razão de 1/3). Na verdade, outros estudos reforçam esta sugestão, mostrando que a síndrome de dependência de álcool é três a quatro vezes mais provável entre parentes de dependentes, quando comparados à população geral.

Alcoolismo: curso da doença

O curso da doença varia de acordo com as características individuais, tipo de tratamento, formas de manejo e de enfrentamento, gravidade da síndrome de dependência, dentre outros. A remissão dessa doença pode ser espontânea em cerca de 20% dos bebedores problemáticos. Fatores de bom prognóstico terapêutico têm sido apontados, tais como:

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  1. Bom funcionamento social (emprego, relacionamentos familiares, falta de problemas legais);
  2. Bom funcionamento orgânico/físico;
  3. Ter o que perder, caso o consumo de álcool permaneça;
  4. Adesão ao tratamento especializado;
  5. Falta de significativa coexistência de outros transtornos psiquiátricos (tais como depressão, ansiedade, transtornos da personalidade).

Embora muitos pacientes consigam atingir a sobriedade por longo período, outros continuam a apresentar vários episódios de lapsos e recaídas, a despeito da variedade de tratamentos médicos e psicossociais aplicados.

No curso da doença, não é incomum observarmos, entre os dependentes, comportamentos violentos, acidentes domésticos e de trânsito, tentativas de suicídio, perda do trabalho, baixa produtividade, lares desfeitos. Outrossim, um grave problema visto diuturnamente entre bebedores problemáticos é a relativa baixa adesão ao tratamento e às recomendações dos profissionais especializados.

Tratamentos

Aqueles com problemas com o consumo de bebidas alcoólicas devem engajar-se em tratamentos médicos e psicossociais

Tendo em vista que a doença é multifacetada e multifatorial, diferentes formas de tratamento podem ser aplicadas, sempre individualizando o manejo clínico. Tratamento farmacológico, psicoterapias, internação em clínicas especializadas e idôneas, grupos de mútua ajuda são os tipos de manejos mais frequentemente recomendados. É uma conduta adequada a combinação de mais do que uma forma de manejo, objetivando otimizar os resultados.

A participação em grupos de mútua ajuda (Alcoólicos Anônimos, por exemplo) é comumente recomendada tanto como um adjunto ao tratamento médico quanto como uma forma de tratamento per si.

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Alcoólicos Anônimos: como a filosofia do A.A ajuda a largar o álcool

Desde 1935, os grupos de A.A têm se espalhado por todos os cantos do planeta. No preâmbulo dos folhetins dos grupos de mútua ajuda (Alcoólicos Anônimos, por exemplo), frequentemente é lido:

“O grupo de mútua ajuda ‘Alcoólicos Anônimos’ é uma congregação de homens e mulheres que compartilham suas experiências, suas fraquezas, suas forças e esperanças com o fim de resolver seus problemas com o beber, bem como ajudar outros que sofrem desses problemas. O único requerimento para a participação nesse grupo é a vontade de parar de beber. Não há taxas ou cobranças nesse grupo. Os Alcoólicos Anônimos (A.A) não são engajados em seitas, políticas, organizações ou instituições. Outrossim, o A.A não tem a menor intenção de se envolver em controvérsias nem tampouco apoia causas. O principal objetivo é a sobriedade”.

Seguindo os conhecidos 12 passos, os grupos de mútua ajuda (Alcoólicos Anônimos) buscam os seguintes objetivos:

  1. Conhecer uma nova “liberdade”, um novo estilo de vida;
  2. Não se arrepender do passado nem tampouco fechar a porta para ele. Aprender com o passado e reconciliar-se com ele são verbos importantes;
  3. Compreender o significado da palavra “serenidade”;
  4. Saber que a escalada pode ser difícil;
  5. Reconhecer que, com a recuperação, outras pessoas poderão ser ajudadas;
  6. Superar sentimentos de autopiedade;
  7. Deixar de lado o egoísmo e alcançar o altruísmo;
  8. Livrar-se do medo das pessoas e da insegurança;
  9. Aprender com os outros e com a própria experiência;
  10. Perceber que uma força maior (Deus) estará fazendo muito por cada um, desde que estejamos abertos para as Suas ações.

Os grupos de mútua ajuda (Alcoólicos Anônimos, por exemplo) não pretendem:

  1. Focar em pesquisas com seus membros;
  2. Estocar ou armazenar histórias dos seus membros;
  3. Seguir ou tentar controlar seus membros;
  4. Oferecer serviços religiosos;
  5. Engajar em educação sobre o álcool;
  6. Fornecer aconselhamento profissional ou doméstico;
  7. Fornecer cartas de referência para Operadores do Direito ou aprovisionar depoimentos sobre quaisquer membros dos grupos em cortes.

Em resumo, os grupos de mútua ajuda tipo Alcoólicos Anônimos não têm a intenção de doutrinar religiosamente qualquer um dos seus membros. Estes grupos pretendem aperfeiçoar aspectos da autotranscendência (aliás, um dos aspectos da dimensão do caráter individual) através de conceitos amalgamados com o campo da espiritualidade. Por exemplo, o A.A visa a promover:

  1. Liberdade, ou seja, quebrar os grilhões que prendem os dependentes ao consumo de bebidas alcoólicas;
  2. Gratidão, o que inclui ter consciência plena sobre o que cada um tem e já conquistou. Por exemplo, ser grato pelo presente da vida que ainda não se findou, apesar de tanta bebida e por tanto tempo;
  3. Humildade, ou seja, adquirir a consciência de que todos temos limites, de que não somos invencíveis. Daí vem o reconhecimento da própria fraqueza diante das substâncias psicoativas, como o álcool etílico;
  4. Tolerância, ou seja, desenvolver a habilidade de suportar e relevar as diferenças e adversidades, mantendo a serenidade.

Grupos de Alcoólicos Anônimos (A.A) são baseados na interação social em que cada membro compartilha suas experiências de sucesso e insucesso; os membros dão apoio emocional aos demais, e fornecem dicas sobre as “armadilhas” que já os conduziram às recaídas.

De uma forma grosseira, pode-se dizer que “se você deseja modificar o seu comportamento, encontre outras pessoas que conseguiram e/ou que estão tentando fazer isso”. Apesar da utilidade desta assertiva, sempre devemos ressaltar que os bebedores problemáticos são muito diferentes entre si, demandando tratamento individualizado. Como tenho sempre comentado no site Vya Estelar, “one size does not fit all”.

É verdade que os grupos de Alcoólicos Anônimos (A.A), apesar de amplamente recomendados ao redor do mundo, ainda encontram forte ceticismo tanto por parte dos profissionais da saúde quanto pelos próprios doentes. Talvez, a perspectiva de manejar o beber problemático sob a ótica espiritual e física provoque alguma descrença sobre a sua efetividade.

Outrossim, é claro que o A.A não é uma panaceia e alguns bebedores problemáticos não se adaptarão a essa forma de manejo.

Também é verdade que existem vários estudos sobre a efetividade do A.A na promoção da abstinência, com resultados nem sempre otimistas. Todavia, devemos levar em consideração que fazer uma pesquisa sobre a efetividade dos grupos de A.A é tarefa deveras desafiadora, visto que os integrantes são por demais heterogêneos e os grupos podem não estar estandardizados (ou seja, cada grupo de A.A pode ter as suas peculiaridades).

Humildade e gratidão são dois pilares dos Alcoólicos Anônimos

Os grupos de Alcoólicos Anônimos reconhecem que a síndrome de dependência de álcool é caracterizada, dentre outros sintomas, pela perda do controle diante do consumo da bebida. Portanto, para muitos dependentes, o álcool etílico, aparentemente inofensivo, pode ser um monstro que, uma vez utilizado, impede o bebedor de cessar o seu consumo, apesar das consequências nocivas e, às vezes, devastadoras. Por isso, a gratidão por ainda estar vivo e a humildade para reconhecer a própria doença e tratá-la a contento são pilares do A.A.

Você está abstinente há 4 anos e, segundo o seu relato, está participando dos grupos de A.A. Agradeça a sua recuperação e seja humilde diante da necessidade de sempre estar alerta aos gatilhos que podem facilitar uma recaída. A arrogância somente vai prejudicá-lo, especialmente quando se tem um tendão de Aquiles. Não existe “vício” em A.A; existe “vício” em álcool e outras substâncias.

Mantenha o seu tratamento, com humildade, gratidão, serenidade e tolerância. Boa sorte!!!

Atenção!
Esta resposta (texto) não substitui uma consulta ou acompanhamento de um médico psiquiatra e não se caracteriza como sendo um atendimento

Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Professor de Psiquiatria do Centro Universitário Faculdade de Medicina do ABC. Pesquisador nas áreas de Dependências Químicas, Transtornos da Sexualidade e Clínica Forense.