Anedonia: o que acontece com quem consumiu drogas por décadas?      

O uso de drogas por décadas provoca uma exaustão de vários sistemas de neurotransmissores, o que pode levar à apatia, anedonia: perda de prazer ou interesse em atividades… Isso sem contar os transtornos comuns entre usuários crônicos, como os transtornos depressivos e ansiosos. Esse quadro é grave, leia o post na íntegra para saber mais.

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“Tenho um irmão que foi viciado em drogas por décadas, começou nos anos 1980 com maconha e álcool, depois cocaína, crack e desirée. Hoje ele tem 58 anos. Tudo isso intercalando períodos de abstinência, recaídas e internações. Mas há uns cincos anos ele não usa mais nada. No entanto, só quer saber de ficar dentro do quarto e dorme muito também. O que pode ter acontecido com ele? Falei com ele para ir a um psiquiatra, mas ele não quer saber de sair do quarto. Também não acho que seja o caso de internar, pois ele não usa mais nada. No que vocês do Vya Estelar poderiam me orientar. Qualquer tipo de ajuda será muito bem-vinda!”

Resposta: Atualmente, é praticamente senso comum que o uso continuado e crônico de substâncias psicoativas, recorrentemente aguilhoando o sistema de recompensa cerebral, acaba por provocar a “exaustão” de vários sistemas de neurotransmissores, tais como o dopaminérgico, serotoninérgico, noradrenérgico, endocanabinoide etc.

Dada tal “exaustão”, sintomas como apatia e anedonia não são nada incomuns e podem precipitar recaídas e piorar de forma incisiva a qualidade de vida do dependente químico. Além disso, há que se considerar que mais do que 50% dos indivíduos com problemas com o uso de substâncias psicoativas apresentam outros transtornos psiquiátricos coexistentes, tais como transtornos depressivos e transtornos ansiosos, os quais podem ser exacerbados pelo consumo das drogas. Logo, antes de discorrer mais profundamente sobre o processo de “exaustão” dos sistemas de neurotransmissão, vale ressaltar de antemão que a anedonia relacionada com a abstinência aguda ou prolongada de uma ou mais substâncias psicoativas precisa ser adequadamente avaliada e investigada por psiquiatra especialista para prover o melhor diagnóstico e, consequentemente, a mais competente proposta terapêutica.

O que é anedonia?

A anedonia pode ser entendida como “um comprometimento agudo, não reativo e generalizado da capacidade de experimentar prazer, ou de responder afetivamente à antecipação do prazer” (Associação Psiquiátrica Americana, 1980) ou, mais recentemente, como “uma perda de interesse ou prazer em todas ou quase todas as atividades e passatempos usuais” (Associação Psiquiátrica Americana, 1994). Além disso, para o subtipo melancólico da depressão maior, a experiência da anedonia tornou-se essencial para a sua categorização.

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Pacientes com problemas com o uso de substâncias psicoativas podem apresentar sintomas tanto físicos quanto psicológicos advindos da síndrome de abstinência (quando da parada ou redução abrupta do consumo da substância).

Usualmente, os sintomas fisiológicos da síndrome de abstinência do álcool, de benzodiazepínicos etc (isto é, tremores, deficiência motora, redução do limiar convulsivo etc) e o declínio da atividade neuronal dopaminérgica responsável pela anedonia, mostram um curso de tempo diferente, com a hipoatividade do sistema dopaminérgico surgindo muito mais tarde e durando muito mais tempo…

Neurobiologicamente, como repisada por várias pesquisas, a anedonia possui um substrato neural, o famigerado circuito de recompensa mesolímbico e mesocortical dopaminérgico, que envolve as seguintes áreas cerebrais: área tegmental ventral (VTA), o striatum ventral e parte do córtex pré-frontal. O sistema de recompensa é então uma coleção de estruturas cerebrais que regula e controla os efeitos prazerosos provocados por estímulos exógenos e/ou endógenos.

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Uma disfunção dopaminérgica central tem sido proposta como um correlato neurobiológico da anedonia. Além da dopamina, uma disfunção nos opioides endógenos (tais como as endorfinas, encefalinas, dinorfinas e orfanina), bem como nos seus receptores (μ, δ, κ), que são amplamente expressos no striatum ventral, manifestam a experiência anedônica.

A anedonia é um importante fator envolvido em recaídas

A anedonia faz parte da sintomatologia da abstinência tanto aguda quanto prolongada e é um importante fator envolvido nas recaídas. Estudos têm constatado que o aumento do uso de cocaína poderia resultar de uma mudança no limiar hedônico para a cocaína e não apenas na sensibilidade à droga. Essa mudança, induzida pelo aumento da quantidade da droga, sugere que um acesso ainda mais longo à cocaína poderia levar a um aumento ainda maior no limiar hedônico. Portanto, sugere-se que a anedonia é um importante fator envolvido na transição do uso recreativo para o consumo excessivo de drogas, como é o caso da cocaína.

Outrossim, vale ressaltar, a anedonia é encontrada como uma característica frequente entre pessoas com problemas com o uso de álcool e de outras substâncias psicoativas, tanto durante a abstinência aguda quanto durante a fase de abstinência prolongada. Infelizmente, usuários crônicos de múltiplas substâncias tendem a experimentar anedonia, apatia, adinamia e vários outros sintomas de depressão.

Como lidar com o grave problema do seu irmão?

Dado o quadro de consumo arrastado de múltiplas substâncias, o seu irmão merece receber tratamento adequado com o objetivo primário de melhorar a sua qualidade de vida.

Ele já obteve um sucesso: cessou o uso das substâncias há alguns anos. Agora, é hora de não perder o resto da vida para as consequências do consumo lesivo pretérito das várias drogas. É hora de agir; não é hora de lamentar.

Tratamentos psicoterapêuticos e psicofarmacológicos específicos para a anedonia têm sido fortemente desenvolvidos nos últimos anos e seu irmão deve ter conhecimento disso. Convença-o a procurar ajuda de um profissional altamente especializado!

Boa sorte !!!

Atenção!
Esta resposta (texto) não substitui uma consulta ou acompanhamento de um médico psiquiatra e não se caracteriza como sendo um atendimento

Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Professor de Psiquiatria do Centro Universitário Faculdade de Medicina do ABC. Pesquisador nas áreas de Dependências Químicas, Transtornos da Sexualidade e Clínica Forense.