Canabidiol: do otimismo e da responsabilidade

Entenda como o canabidiol pode ser um aliado no tratamento de doenças, no tratamento de autismo; conheça seus efeitos positivos e negativos

Substâncias que atuam no Sistema Nervoso Central, com especial atenção no correntemente popular Sistema Endocanabinoide, têm sido testadas ao redor do mundo para o manejo clínico de diferentes doenças. O Sistema Endocanabinoide consiste em receptores (proteínas) cerebrais e periféricos que reconhecem substâncias específicas e, sob o estímulo destas substâncias, exerce ações cerebrais e periféricas.

O nosso cérebro produz normalmente substâncias endocanabinoides (como é o caso da Anandamida) que atuam fisiologicamente nestes receptores, exercendo funções no processo de organização do pensamento, no controle da dor, na modulação do humor, no processamento da memória, na regulação do apetite, nas respostas sensoriais, dentre outras. Outrossim, este Sistema Endocanabinoide exerce influência sobre o chamado sistema de recompensa cerebral, e quando este último complexo sistema é ativado, comportamentos repetitivos podem ocorrer.

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Das mais de 480 substâncias derivadas das plantas Cannabis sativa e Cannabis indica, o Canabidiol é apenas uma delas e também atua no Sistema Endocanabinoide. Segundo vários dados provenientes de pesquisas clínicas, o Canabidiol não tem mostrado provocar efeitos estupefacientes, de euforia ou de perturbação do funcionamento do Sistema Nervoso Central. Além disso, o Canabidiol não apenas medeia os efeitos no Sistema Endocanabinoide cerebral, mas também atua sobre outros sistemas de neurotransmissores, como aqueles relacionados com a serotonina e com os opioides endógenos.

Efeitos

Apesar da falta de efeitos psicotrópicos do Canabidiol, todos os estudos envolvendo o uso de derivados da Cannabis ficam alerta aos possíveis efeitos negativos e mesmo positivos dos seus derivados canabinoides, tais como:

a) Percepção e Sensação: fadiga, euforia, modificações sensoriais, sensação de estar diferente, alteração da percepção do tempo, alucinações e outros estados psicóticos;

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b) Desempenho e Cognição: pensamento fragmentado, perturbação da memória, alteração da marcha, piora ou melhora do desempenho motor;

c) Demais Funções no Sistema Nervoso: analgesia, relaxamento muscular, aumento do apetite, neuroproteção;

d) Temperatura Corporal: redução da temperatura corporal;

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e) Sistema Cardiovascular: aumento da frequência cardíaca, vasodilatação periférica, hipotensão ortostática (quando a pessoa se levanta de uma posição sentada);

f) Olhos: olhos vermelhos, alteração da pressão intraocular;

g) Sistema Respiratório: bronco-dilatação, boca seca, redução da produção salivar;

h) Trato Gastrointestinal: retardo do esvaziamento gástrico;

i) Sistema Hormonal: atividades sobre o funcionamento dos hormônios sexuais, redução da mobilidade de espermatozoides, desregulação do ciclo menstrual;

j) Sistema Imunológico: atividade anti-inflamatória, melhora de determinados tipos de resposta imunológica;

k) Desenvolvimento Fetal: má formações, prejuízos cognitivos sérios ao feto, retardo no ganho ponderal;

l) Material Genético e Câncer: inibição da síntese de proteínas, atividade anti-neoplásica (contra o surgimento de células atípicas).

Tendo como foco os efeitos benéficos dos derivados canabinoides, reiteradas pesquisas têm sido desenvolvidas para apontar quais derivados são interessantes sob o ponto de vista médico, sempre levando em consideração a eficácia e a segurança terapêutica.

Quadros clínicos de dor crônica, espasticidade refratária, transtornos convulsivos específicos, anorexia em portadores de AIDS, transtornos do espectro do Autismo são apenas alguns dos problemas médicos que têm demandado o uso dos derivados canabinoides.

Canabidiol no Brasil

Atualmente no Brasil, temos a medicação chamada MevatylÒ (Sativex, Nabiximols) que foi aprovada pela ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) em 2017. Esta medicação contém uma associação do Delta9-Tetraidrocanabinol (THC) com o Canabidiol. Ela é recomendada para quadros de espasticidade grave, como ocorre em alguns casos de Esclerose Múltipla, quando nenhuma outra forma de manejo farmacológico foi suficientemente promissora.

Efeitos colaterais  

Os principais efeitos colaterais desta medicação até então reportados são: fadiga, tontura, náuseas, visão borrada, boca seca e prejuízo da concentração. Embora a preocupação com o desenvolvimento de um quadro de síndrome de dependência esteja sempre presente, os estudos, no momento, indicam que esta chance é muito pequena.

Como dito, o Canabidiol não induz os típicos efeitos psicológicos produzidos pelo Delta9-Tetraidrocanabinol (THC). No entanto, as duas substâncias derivadas das plantas do gênero Cannabis podem interagir.

Um estudo demonstrou que o uso concomitante do Delta9-Tetraidrocanabinol (THC) com o Canabidiol produziu uma redução significativa dos efeitos psíquicos que seriam induzidos se apenas o Delta9-Tetraidrocanabinol (THC) fosse utilizado.

Embora haja, no momento, uma medicação canabinoide (MevatylÒ) aprovada para comercialização no nosso país, a ANVISA prevê a importação responsável de outras medicações canabinoides já chanceladas para uso clínico por outros órgãos de fiscalização e regulatórios.

De acordo com a ANVISA, a importação de medicamentos à base Canabidiol e outros canabinóides para uso pessoal é permitida pela agência. A Agência vem autorizando a importação excepcional desses produtos desde 2014. Atualmente, o procedimento ocorre de acordo com a RDC (Resolução da Diretoria Colegiada) 17/2015, que define os critérios e os procedimentos para a importação, em caráter de excepcionalidade, de produto à base de Canabidiol em associação com outros canabinóides, por pessoa física, para uso próprio, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado, para tratamento de saúde.

Otimismo: percalços e razoabilidade

Como referido previamente, as indicações para o uso clínico dos derivados canabinoides têm vicejado e o otimismo acerca dos seus efeitos têm aumentado vertiginosamente. Por exemplo, no caso dos transtornos do espectro do Autismo, é verdade que o sistema endocanabinoide está implicado no desenvolvimento destes quadros. Tanto aspectos comportamentais, neuropsicológicos e imunológicos estão alterados aqui, e o sistema endocanabinoide parece estar associado com todos eles.

Canabinoides e autismo

Com isso, surge a atratividade clínica dos canabinoides para o manejo dos portadores dos transtornos do espectro do Autismo também, como uma tentativa de recuperar ou tratar algumas das funções psíquicas inerentemente prejudicadas. De fato, o sistema canabinoide endógeno (existente no nosso corpo) exerce papel importante no desenvolvimento do sistema nervoso central e a ativação deste sistema pode induzir modificações comportamentais e imunológicas de longa duração.

De qualquer maneira, devemos sempre lembrar que os transtornos do espectro do Autismo são bastante heterogêneos. Isso significa que determinados manejos terapêuticos podem ser recomendados para um grupo de portadores mas não necessariamente para todos eles.

É importante ressaltar aqui que a utilização do THC em pessoas com o cérebro ainda em desenvolvimento pode produzir alterações persistentes tanto na estrutura cerebral quanto na cognição (atenção, memória, orientação). Modelos de pesquisa em animais têm mostrado prejuízos duradouros à memória depois da exposição ao THC e drogas canabinoides.

Outrossim, a árdua tentativa de separar os efeitos nocivos dos benéficos destas substâncias derivadas da Cannabis tende ainda a ser um forte óbice ao tratamento médico, no qual se preza firmemente a eficácia terapêutica bem como a sua segurança.

Canabinoides e doenças diversas

A notícia sobre a possibilidade do uso de derivados canabinoides no tratamento de doenças diversas é bastante animadora. Entretanto, muito mais pesquisas deverão ser realizadas com a finalidade precípua de avaliar a eficácia real sobre determinados sintomas e funções físicas e psíquicas, bem como de estimar rigorosamente a segurança terapêutica durante o uso da medicação.

Sem abalar o otimismo, mas sobrepesando a razoabilidade, devemos lembrar que os derivados canabinoides podem suprimir ou mesmo intensificar efeitos sobre o corpo, incluindo náuseas, vômitos, tremor, ansiedade.

Os canabinoides têm sido aprovados para uso em casos de vômitos incoercíveis após quimioterapia; contudo, em algumas situações, podem piorar os vômitos. Eles têm sido usados como analgésicos; no entanto, às vezes, provocam dor. Eles podem causar ansiedade, mas também podem ser ansiolíticos. Eles são atraentes, mas, às vezes, preocupantes.

Devemos levar em consideração que os derivados canabinoides podem causar efeitos contrastantes em humanos, dependendo das características individuais, dosagens e formas de administração.

Obviamente, apesar dos atraentes efeitos anunciados no texto, os efeitos indesejáveis destes derivados canabinoides precisam ser levados em consideração e qualquer forma de prescrição indiscriminada destes derivados deve ser combatida.

Canabidiol extramuros

Nos Estados Unidos da América, e de acordo com o FDA (Food and Drug Administration),a medicação Epidiolex, que contém canabidiol para o tratamento das crises epilépticas incoercíveis provocadas pelas Síndromes de Lennox-Gastaut e de Dravet, desde que os pacientes tenham idade de 2 anos ou mais, foi aprovada para uso medicinal. O FDA também aprovou as medicações Marinol e Syndros para uso terapêutico na anorexia grave associada com importante perda de peso em pacientes com AIDS. Marinol e Syndros incluem os ingredientes ativos THC e Dronabinol. Uma outra medicação aprovada pelo FDA foi o Cesamet que contém o canabinoide Nabilona e indicado para o controle de vômitos incoercíveis associados à quimioterapia. Portanto, em 2019, quatro medicações já tinham obtido oficialmente a aprovação para uso pelo FDA nos Estados Unidos da América.

Assim, para aqueles que padecem de transtornos e doenças cujos tratamentos atualmente são escassos ou mesmo falhos, esforços devem sempre ser envidados na descoberta de vias promissoras e promotoras da melhor qualidade de vida. Seguramente, outros componentes ativos da planta poderão ser mais adequadamente estudados e gerar resultados positivos para todos nós. Desde a inclusão da planta no rol das Denominações Comuns Brasileiras pela ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), pesquisas nacionais tendem a ser também mais desenvolvidas e isso é bom para a comunidade científica nacional.

Canabidiol: expansão

Hoje, existem várias propagandas viabilizando o fácil acesso aos diferentes derivados canabinoides. Basta uma consulta rápida na Internet para descobrirmos diversas formas para a aquisição.

As agências reguladoras (por exemplo, ANVISA e FDA) estão cientes de que vários produtos derivados canabinoides não chancelados estão sendo amplamente comercializados para tratar diferentes condições, tais como quadros epilépticos, anorexia relacionada com a AIDS, dor crônica, sintomas associados com o câncer (dor e náusea pós quimioterapia), dor neuropática, depressão, dependências químicas, dentre outras. Nós devemos estar também cientes de que as agências reguladoras têm como princípio a aprovação de medicamentos e substâncias comprovadamente seguras e eficazes para o fim a que elas se destinam. O uso de derivados canabinoides não aprovados pelos órgãos de regulação podem consistir em um problema, com consequências ainda imprevisíveis.

As agências reguladoras tendem a envidar grandes esforços para a aprovação de substâncias para uso em humanos, sempre respaldadas por pesquisas científicas de qualidade. Por vezes, uma determinada substância exige avaliações rigorosas e rápidas, dada uma demanda urgente ou uma situação inesperada. As agências têm feito o seu papel em diferentes situações, evitando colocar em risco a população desavisada.

Alguns Chamados

Opto, aqui, por apontar alguns alertas oferecidos pelo próprio FDA (Food and Drug Administration) em relação aos derivados canabinoides (em especial ao Canabidiol), datados de Maio/2020.

a) O derivado canabinoide THC (Tetrahidrocanabinol) produz efeitos psicotrópicos e pode conduzir o usuário ao abuso e à síndrome de dependência;

b) A maconha não é a mesma coisa que o Canabidiol. O Canabidiol é um único derivado da planta de gênero Cannabis (dentre mais de 480 outros derivados);

c) O FDA tem aprovado o Canabidiol para tratar formas raras e graves de problemas médicos, quando outras tentativas têm mostrado ineficácia;

d) É correntemente ilegal comercializar o Canabidiol taxando-o como um suplemento alimentar ou dietético;

e) O FDA tem visto ainda poucos dados sobre a real segurança terapêutica do Canabidiol e isso deve ser levado em consideração ao prescrever e/ou fazer uso da substância;

f) Infelizmente, alguns produtos derivados canabinoides têm sido comercializados sem comprovada eficácia e aprovação pelos órgãos reguladores. Portanto, os cuidados devem ser redobrados !!!

g) O Canabidiol tem potencial para causar efeitos adversos, como dano hepático, interação com outras medicações usadas pelo indivíduo, potencial para interferir com a fertilidade, sonolência, alteração no funcionamento digestivo, mudanças no humor e ansiedade.

Segundo o mesmo órgão fiscalizador e regulador, existem questões que ainda precisam ser respondidas, além de uma dúvida razoável:

1. O que ocorre ao indivíduo que faz uso crônico de Canabidiol ?

2. Como diferentes modos de administração da substância afetam o curso dos sintomas das doenças ?

3. Como o Canabidiol afetará o desenvolvimento, maturação cerebral e as suas conexões sinápticas ao longo do uso ?

4. Quais são os efeitos do Canabidiol sobre o feto e recém-nascido ?

5. O Canabidiol realmente provoca efeitos deletérios sobre a fertilidade masculina, como tem sido observado em estudos com animais (ratos)?

É bom termos novas opções terapêuticas seguras e eficazes para o tratamento de diferentes doenças cujo controle é impérvio aos efeitos de medicações tradicionais ou mais convencionais. No entanto, devemos estar alerta aos efeitos indesejáveis das novas drogas. Devemos saber diferenciar o que é a boa ciência do que é a ciência “junk”. Devemos estar alerta aos interesses comerciais sobre a possibilidade da venda indiscriminada das substâncias canabinoides.

Estejamos alerta sempre !!!

Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Professor de Psiquiatria do Centro Universitário Faculdade de Medicina do ABC. Pesquisador nas áreas de Dependências Químicas, Transtornos da Sexualidade e Clínica Forense.