por Roberto Goldkorn
Uma leitora me escreveu dizendo ter comprado o meu livro Dormindo com o Inimigo, em busca de respostas para a sua situação. Mas segundo ela, o resultado foi frustrante uma vez que as duas soluções que ofereci, não eram exeqüíveis. A primeira solução, ainda segundo ela, era uma terapia de casal. Isso ela e o marido (o inimigo) já faziam sem sucesso, pois ele encenava um papel o tempo todo, cativando a terapeuta e ao chegar em casa 'virava bicho'.
A outra solução apesar de aparentemente mais simples, também não era possível: a separação! Ele me disse que não iria partir para essa saída, pois “há muito patrimônio e bens”, e não iria “jogar fora o esforço de uma vida toda”.
Não é a primeira vez que ouço esses argumentos, ao contrário, eles são muito comuns, e até compreensíveis diante das circunstâncias. Um conhecido passou anos penando ao lado da mulher ensandecida e perversa, por amar muito o filho, e não admitir a hipótese de deixá-la com a guarda do menino, e afastar-se dele, o que ela fatalmente faria acontecer.
Sei que não é possível generalizar casos assim, cada um tem a sua particularidade, seus pontos ultra sensíveis, seu timing, mas o que a maioria das pessoas envolvidas nesses emaranhados não consegue perceber, é que o nó é mais embaixo.
Freud disse que qualquer situação desse tipo (refém do outro) em adultos era ilusória, pois apenas as crianças poderiam ser justificadas em sua prisão de dependência. Os adultos para Freud teriam uma espécie de salvo-conduto para ir e vir de relacionamentos e se não o faziam era devido a amarras culturais, ou auto-ilusórias. Na teoria ele estava absolutamente certo. Mas algumas dessas armadilhas são tão poderosas, tão intrincadas e cheias de subtítulos, que tornam a liberdade freudiana, praticamente impossível.
E de onde vem esses enredos mefistotélicos que quando não matam aleijam seus atores? Na minha opinião vem da vida passada, de programas pregressos, que antecederam a existência atual, se alojam em camadas profundas do inconsciente e por isso, são tão poderosos, e muitas vezes invencíveis. Frases como “é mais forte que eu”, “conscientemente eu sei, mas não consigo fazer o contrário”, “bebo porque gosto de beber, não tem nada a ver com a minha situação conjugal”, são indicativas das tenazes poderosas que esses scripts antigos são capazes de gerar quando ativados na vida atual.
Como Freud deveria saber, há programas do inconsciente do João que tornam uma situação, banal para Pedro, numa catástrofe. Uma mulher que trás de vida passada um programa traumático de privações e humilhações por causa da pobreza, pode ter muita dificuldade de romper com uma relação que a ameaça com esses fantasmas, principalmente se ela apostou as suas únicas fichas (para escapar do “fantasma”) naquele homem.
Um homem que foi abandonado pelos pais (e registrou isso como fator desencadeante de sua infelicidade), pode ter uma enorme dificuldade de se separar da mulher que o faz infeliz. Ele talvez nem tenha consciência de que projeta nos filhos a sua imagem de órfão, abandonado, e apavorado. Isso não é ilusão, embora também não seja real, mas é devastador para os atores dessa peça.
Muitas vezes tento argumentar que certas contas não devem ser feitas, pois o sofrimento de se manter numa relação infelicitante não tem preço, não pode ser contabilizado. Esse é o meu papel, mas sei que não se abre com a chave da racionalidade e da objetividade o baú desses programas intensamente emocionais. Programas enterrados nas profundezas do inconsciente, que por sua vez estão acorrentados a outros baús, ocultos, ou fora da tela dos radares.
O corpo, porém (e também a mente), não escapam dessa autoflagelação. Mesmo que você não afogue as suas mágoas na bebida ou tente fugir nas ondas da droga, há outros venenos mais sutis que se encarregam de fazer o trabalho sujo. Mas, ironicamente, são os resultados desse lento auto-envenenamento que podem trazer a força libertária ao sujeito-crise. Explico, as doenças ou acidentes causados por esse processo torturante podem se tornar o turning point da libertação. Muitas vezes é na cama de um hospital que o sujeito pára e consegue colocar sua situação numa perspectiva mais saudável. Muitas vezes é quando encara a morte de frente que a energia da vida é acionada para o tudo ou nada. É triste constatar isso, mas a doença ou a dor dilacerante costuma vir como o último e desesperado aviso de abandonar o barco. Como o meu antigo mestre dizia: o homem comum só se move com o chicote estalando no seu dorso. O homem superior se move apenas com a sombra do chicote. Um dia quem sabe todos nós seremos superiores.