Cocaína: filho de usuário pode se tornar dependente?

E-mail enviado por uma leitora:

“Olá doutor, o pai do meu filho tem 25 anos e usa há 13 anos cocaína. Vai fazer cinco anos que estamos juntos e temos um filho de um ano e sete meses. Queria saber se ocasionalmente o meu filho pode ser um usuário quando for maior? Quais prevenções devo tomar? Pois ele é ainda um bebê, mas e depois? Toda a trajetória da minha gestação foi um caos, não tive uma gestação tranquila por conta do pai dele.”

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Resposta: O desenvolvimento de um quadro de síndrome de dependência de cocaína tem suas raízes em diversos fatores, como o genético, psicossocial, problemas psicológicos subjacentes, influência dos pares (amigos), suporte parental inadequado dentre outros.

Este quadro de dependência química é de natureza neurobiológica, visto que com o uso da cocaína, inúmeras alterações cerebrais são instaladas e uma reformulação neuronal distinta pode acontecer. Mas tais alterações neurobiológicas tendem a ocorrer principalmente durante o período de consumo. Dadas tais alterações cerebrais, o portador do quadro de Síndrome de Dependência de Cocaína tem dificuldades para cessar o uso e tende a apresentar várias recaídas. Não é sem sentido que o seu marido consuma a droga há cerca de 13 anos.

Não razão unidirecional ou uni-causal entre pais usuários e o desenvolvimento do mesmo quadro na prole

Dito isso, não podemos estabelecer uma associação uni-causal ou unidirecional entre ter pais usuários de cocaína e o desenvolvimento do mesmo quadro na prole. O que podemos dizer é que a prole pode apresentar um terreno mais fértil para o desencadeamento do problema, o qual, isoladamente, tem efeito pequeno quando não estiver associado com os outros vários fatores.



Há evidências de que o consumo de substâncias psicoativas pode interferir no desenvolvimento do bebê


Existem algumas evidências de que o consumo de substâncias psicoativas pelo pai, como a cocaína, pode interferir no desenvolvimento físico, cognitivo e comportamental dos bebês.

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Alguns estudos têm demonstrado que:

a) após controlar (nas análises) os efeitos do consumo de álcool e de outras drogas pela mãe sobre o feto, o consumo de drogas pelo pai é também significativamente relacionado com prejuízos no desenvolvimento cognitivo da criança.

b) filhos de pai alcoolista e/ou usuário de outras substâncias podem apresentar menores escores em testes de memória, habilidade visuais e espaciais e linguagem.

Em outras palavras, e por mecanismos ainda não plenamente esclarecidos, o consumo excessivo de bebidas alcoólicas e/ou outras substâncias, como a cocaína/crack, pelo pai afeta negativamente o feto tanto em termos comportamentais quanto cognitivos, mesmo quando a mãe não utiliza substâncias. Prejuízos de memória, linguagem, desempenho acadêmico e atenção têm sido observados entre filhos de pai usuário.

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Outros estudos

Outros estudos têm verificado que pais usuários crônicos de cocaína podem apresentar alguns defeitos nos espermatozoides, como redução da mobilidade, diminuição da produção e maior risco de anormalidades morfológicas. Alguns estudos experimentais, realizado em ratos, têm mostrado que ratos (machos) que fizeram uso de cocaína cronicamente podem gerar uma prole com baixo peso e tamanho, além de aumentar o risco de morte neonatal. Mas, repetindo, esse estudo foi experimental com animais (ratos).

Trata-se de assunto bastante vasto, onde inúmeras variáveis podem interagir promovendo um resultado bastante insatisfatório.

Dentre estas “inúmeras variáveis”, os fatores ambientais devem sempre ser levados em consideração, visto que é muito difícil formular uma explicação uni-causal para a associação entre “uso de substâncias pelo genitor” e “problemas comportamentais e cognitivos” nos filhos.



Pai usuário: mãe pode passar por estresse com desgaste físico e psicológico

Alguns autores têm apontado que os filhos de pai usuário de álcool e/ou outras substâncias, durante a gestação, sofrem várias influências ambientais e sociais negativas, tais como:

a) estresse da mãe

b) exposição da mãe às drogas

c) inadequado suporte do pai durante a gestação

d) maior desgaste físico e psicológico da mãe

e) maior chance de comportamentos agressivos pelo pai

f) maior risco de complicações legais pelo usuário

g) várias dificuldades relacionais entre o pai e a mãe

h) vínculos familiares disfuncionais.

Tudo isso, seguramente, afeta o período da gestação e posterior. Outrossim, fatores genéticos também devem ser considerados aqui. Alguns autores aventam que filhos de pai com dependência química apresentam maior chance de desenvolver quadro clínico de dependência química no futuro e, muitas vezes, alterações comportamentais e cognitivas discretas podem ser vislumbradas na infância. Mas, repetindo, o aspecto genético é apenas mais um fator de risco.

Somando aos fatos reportados acima, ou seja, influência direta e indireta do consumo de substâncias psicoativas pelo pai sobre a saúde da criança, devemos considerar também que muitos usuários de substâncias apresentam uma notável variabilidade de problemas psicopatológicos (depressão, ansiedade, problemas de personalidade) que têm seus fundamentos genéticos.

Filhos de usuários podem demonstrar problemas de conduta desafiadora e agressiva  

Por exemplo, um estudo tem sugerido que filhos de pai dependente químico estão em maior risco de demonstrar problemas de conduta (ser desafiador, agressivo, desrespeitoso quanto às regras sociais, carente em empatia afetiva) quando o genitor e/ou a gestante também portam outros transtornos psiquiátricos concomitantes (como depressão e ansiedade). Entre 50 e 60% dos usuários problemáticos de cocaína apresentam sintomas de outros transtornos psiquiátricos.

Desta forma, os pais usuários de cocaína devem estar em tratamento médico e psicossocial prolongado, evitando recaídas e, consequentemente, problemas familiares (relacionais, financeiros, agressividade, jurídicos) que geram estresse continuado ou repetitivo sobre a família como um todo.

Os filhos devem receber os cuidados paternais adequados, como qualquer outra criança. Apesar da evidente base genética para o uso problemático de cocaína, tenho visto na prática clínica diuturna que grande parte dos filhos evitam seguir os mesmos passos nefastos do familiar dependente, com receio de tornarem-se também dependentes.

Criem seus filhos em um ambiente que proporcione atenção, boa conexão afetiva com o bebê, proteção e observação de comportamentos hostis. Veja bem: todos os pais devem cumprir estas recomendações, independentemente da existência de genitor dependente químico.

Na puberdade e mesmo antes e depois, sempre procurem manter um canal de conversação com seus filhos, inclusive sobre os perigos do consumo de substâncias.

Por que as pessoas consomem drogas?

Em resumo, pessoas consomem substâncias psicoativas por diversas razões. Algumas o fazem em situações sociais, objetivando momentos de prazer e relaxamento. Outras o fazem para lidar com a infelicidade, problemas de autoestima ou mesmo para superar sentimentos de vergonha ou culpa. Outros usuários vivem em ambientes onde o consumo de substâncias é parte integrante da cultura do indivíduo. Outros, ainda, começam a usar por diversas outras razões e mantêm o uso porque não mais conseguem se desvencilhar dos sintomas advindos da abstinência. Sem falar de outras pessoas que fazem uso de substâncias para lidar com sintomas de outras doenças médicas, como depressão e ansiedade.

Consumir substâncias psicoativas pode significativamente afetar a saúde física e mental do usuário e das pessoas que convivem com ele. Daí a necessidade dos pais estarem sob tratamento especializado.

Dependendo da substância consumida, associada com a personalidade do usuário e com uma miríade de outros fatores, diferentes consequências nocivas podem surgir. É muito mais fácil ocorrer um acidente doméstico, por exemplo, quando o pai tem feito uso de substâncias. Diante disso, a habilidade como pai ou mãe pode ser amplamente prejudicada, quando os mesmos estão fazendo uso de substâncias psicoativas.

Consumo de drogas e o abalo na estrutura familiar

Quando os genitores demonstram problemas com o consumo de substâncias psicoativas, várias funções e estruturas familiares são perturbadas, por exemplo:

a) Papéis: à medida que o pai ou a mãe demonstra problemas com o uso de drogas, outros membros da família, inclusive os próprios filhos, podem acabar sofrendo diferentes tipos de trauma, como negligência e abusos.

b) Rotinas: quando o genitor consome frequentemente e inadequadamente substâncias psicoativas, seu comportamento torna-se imprevisível para os demais membros familiares, como por exemplo: será que o pai (neste caso) está por perto e bem?

c) Comunicação: as mensagens verbais e não verbais emitidas pelos genitores dependentes químicos acabam por ser mal interpretadas pelos demais membros ou mesmo ameaçadoras, o que torna a convivência familiar ainda mais insuportável, com sérias disfunções.

d) Vida Social: familiares de genitores dependentes químicos acabam se tornando cada vez mais isolados de outras pessoas, não apenas devido à dificuldade em explicar determinados comportamentos embaraçosos como também pela dificuldade dos membros familiares em contar aos outros membros da família que o pai (ou mãe) tem problemas com drogas.

e) Finanças: um declínio financeiro é esperado no contexto de genitores usuários de substâncias. Muitas vezes, o pai gasta o salário com álcool e drogas, em detrimento das necessidades básicas dos filhos.

f) Relacionamentos intrafamiliares: episódios de violência, negligência e abuso são altamente prevalentes em famílias onde os genitores são dependentes químicos.



Filhos de usuários podem ter dificuldades emocionais 

As crianças costumam ter experiências bastante negativas, quando os genitores têm problemas continuados com o consumo de substâncias, como por exemplo:

a) Vivência de ambientes violentos

b) Experiências de abuso e negligência

c) Sentimentos negativos, tais como desamparo

d) Prejuízos no desenvolvimento neuropsicomotor

e) Isolamento social

f) Dificuldades emocionais e de controle impulsivo

g) Mau desempenho escolar futuro.

Logo, como parece ser o óbvio ululante, o consumo de substâncias pelos pais é algo que precisa ser sempre combatido. Estudos têm tanto averiguado as causas principais do problema e as repercussões sobre os filhos e demais familiares quanto investigado os fatores que pioram os resultados do tratamento médico e psicológico especializados.

Fatores de risco para um prognóstico mais complicado do problema:

a) Episódios de violência doméstica.

b) Abuso físico, sexual e emocional

c) Ausência de um adulto estável (que pode ser um professor aliado, um agente de saúde)

d) Falta de busca por ajuda especializada pelos genitores

e) Pai e mãe dependentes químicos que não estão em recuperação

f) O consumo das drogas ocorre dentro da própria casa

g) Atividades criminosas por parte dos pais

h) As crianças presenciam o consumo de drogas e veem as parafernálias.

Também, existem importantes repercussões legais para aqueles que, devido ao uso de substâncias, determinam situações de risco para os seus filhos.

Conforme reza o artigo 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), “toda criança e adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substancias entorpecentes”.

Reitero mais uma vez:

a) o genitor dependente deve estar em tratamento com especialistas em dependência química de forma continuada

b) o apego à criança deve ser estimulado

c) a observância continuada, mas não desesperada, sobre o comportamento progressivo do filho deve ser realizada pelos pais e familiares confiáveis.

A sua preocupação é pertinente, dadas as raízes genéticas do problema. Todavia, seguindo estas recomendações, as chances de um futuro sombrio tendem a reduzir drasticamente.

Se o seu marido tem ou teve problemas com o uso de substâncias, ele tem uma vulnerabilidade que precisa ser continuadamente revista. Acredito que o seu filho mereça toda esta atenção, apego e cuidados.

Pai dependente não é uma sentença condenatória

Em linhas gerais, ter um genitor dependente químico não é uma sentença condenatória para os filhos; no entanto, se o genitor persistir no uso da cocaína, se os laços afetivos não forem estreitados e adequados entre os pais e filhos, se toda a responsabilidade por quaisquer desvios do comportamento do filho forem atribuídos ao genitor dependente por si só, estaremos diante de um quadro preocupante.

Faça o certo. Evite apontar dedos. Estabeleçam laços afetivos com seus filhos. Observem o comportamento progressivo dos mesmos. Tratem-se para não haver recaídas.

Avante!