Nos últimos tempos, tem sido comum encontrar, entre as questões que as pessoas trazem ao consultório de filosofia, o desconforto com a violência das discussões polarizadas, especialmente nas redes sociais, mas também nos encontros presenciais. O que deveria ser, em princípio, um encontro familiar, uma conversa entre amigos, uma troca de ideias, acaba por se transformar em ofensas, xingamentos, atitudes agressivas, rompimento das relações etc.
Estaríamos nos tornando intolerantes? Teríamos perdido a capacidade de conversar com quem pensa diferente de nós? Onde está nossa disposição para compreender a perspectiva daqueles que pensam diferentemente de nós e para argumentar apresentando a eles os motivos pelos quais pensamos como pensamos? Temos disposição para examinar nossos argumentos, para questionar, avaliar e até, se for o caso, repensar nossos posicionamentos? Nos permitimos, quando necessário, modificar nossas opiniões? Ou estamos presos a elas de tal maneira que desejamos convencer o outro a qualquer preço? Como você, leitor, se vê nesses contextos. Você já sofreu com a violência das discussões polarizadas?
O problema é advindo das redes sociais?
Associar este problema às redes sociais é muito comum. Por isso, algumas pessoas, em busca de relações mais saudáveis, abandonam as redes. Mas seria, de fato, um problema advindo das redes sociais que extrapolou os limites delas? Ou algo derivado de uma característica dos modos de relação contemporâneos, uma vez que nos deparamos com posicionamentos violentos também em encontros presenciais?
Kalynka Cruz-Stefani, no texto “Cacofonia e polifonia na web versus a materialização multidimensional do fenômeno” – capítulo da coletânea Cacofonia nas Redes, organizada por Lucia Santaella e resultante dos estudos do grupo de pesquisa Sociotramas, discute a questão, investigando se a perda da razoabilidade do mundo atual está, de fato, vinculada aos fatores desagregantes presentes na web (p. 47). Após apresentar alguns motivos intrínsecos às vivências na web para a “cacofonia nas redes” e a consequente perda da razoabilidade – tais como “há muita desinformação, todos querem falar, mas têm preguiça de se aprofundar e buscar a verdade” (p. 48) – aponta interesses políticos, econômicos e ideológicos vinculados ao fenômeno, sugerindo que as polêmicas que pensamos surgir naturalmente, são criadas para atender a tais interesses e disseminadas a partir de técnicas geradas especialmente para tais fins. Entre elas, encontramos social bots, ciborgues, perfis fakes pagos, que interagem conosco.
Haters: odiadores na web
A autora destaca a presença dos haters, “como o nome diz, são os odiadores, os cavaleiros negros do apocalipse-web. Eles não podem conviver com o sucesso, com qualquer tipo de comportamento alheio que difira daquilo que entendam culturalmente como verdade” (p. 54), são eles, segundo Kalynka Cruz-Stefani, os responsáveis pela violência, pelo ódio, pela perda da razoabilidade e pela disseminação da barbárie. Além deles, ela aponta para o surgimento dos neo-haters, vinculados a causas coletivas e definidos como “justiceiros digitais”.
Embora a perda da razoabilidade, a barbárie, possa ser observada em diferentes momentos históricos, muito antes do surgimento da web, as formas de atuação contemporâneas parecem propiciá-la. Hoje existem programas (web robots) que geram perfis falsos que interagem conosco, atuando como haters. Diante de uma postagem que defende uma determinada ideia (identificada a partir da presença de determinados termos ou hasthags, tais programas geram perfis falsos, que postarão comentários violentos, com palavras de ódio (previamente programados), com o objetivo de inibir a exposição daquela ideia. Esta prática, muito rapidamente, propiciou o surgimento de pessoas que, motivadas pelas postagens dos robôs da web, seguiram com comentários tão ou mais violentos. Nessa onda, os neo-haters, que parecem ter surgido espontaneamente, são mais agressivos que os robôs. Seria esta agressividade gerada pelo incentivo dos web robots ou já estaria presente em nossas falas e comportamentos cotidianos? Seria a barbárie digital um fenômeno específico da web ou apenas a replicação, em maior escala, de um fenômeno social há muito existente?
Cotidiano cada vez mais violento
Obviamente, a intensa replicação deste fenômeno na web traz como resultado um cotidiano cada vez mais violento, com posturas cada vez menos razoáveis, uma vez que gera a impressão de tais comportamentos serem a “voz comum”, existirem com mais frequência do que realmente existem. Mas se considerarmos que os neo-haters, na verdade, são aqueles de nós que “entram na onda” e se colocam de modo violento, agressivo, desrespeitoso, intolerante etc, concluiremos que a barbárie independe da existência da web. Ela só cria a impressão de que outros agem assim, abrindo o precedente para agirmos da mesma maneira. O precedente é, de fato, aberto? Por que, ao vermos alguém emitir palavras de ódio a outra pessoa, acreditamos ter o direito de “fazer coro” com o agressor? Como agir diante de posturas que disseminam a barbárie?
A razoabilidade exige exame dos argumentos, portanto, exige argumentação. Exige investigação da realidade, verificação das possibilidades. Não é através das palavras de ódio, não é destruindo quem pensa diferente de nós que chegaremos à razoabilidade. Precisamos disseminar o diálogo questionador, investigativo: O que isto significa? Por que você pensa dessa maneira? Por que acredita que este é o melhor caminho? Por que eu penso dessa maneira? Que motivos tenho para acreditar que este é o melhor caminho? Por que não são criados web robots para disseminar perguntas dessa natureza? Por que perguntas como essas não viralizam – na web e fora dela?