Como lidar com os nossos inimigos?

Como lidar nossos inimigos de maneira vitoriosa? Quem são eles? Em busca da “imunização” relacional.

Introdução

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“Se o que te aborrece tiver fome, dá-lhe pão para comer; se tiver sede, dá-lhe água para beber, porque assim amontoarás brasas vivas sobre a sua cabeça…”
(Provérbios 25, versículo 21. Bíblia de Estudo Almeida. Sociedade Bíblica do Brasil: Barueri.1999).

Seguindo a linha de reflexão do texto anterior, sobre a aprendizagem da pedra, e em face, dentre outros desalinhos sociais, da permanente escalada de sofrimentos, mortes e descalabros vividos em nosso país, provocados por irresponsabilidades governamentais e civis, pego-me com uma ideia fixa a dois meses, tempo em que matuto para escrever esse texto. Como lidar com nossos inimigos de maneira vitoriosa? “Quem são eles? Como não ser consumida pela revolta, raiva e pelo ressentimento?”

Deixadas de molho, na região do Bulbo Cerebral, lugar indicado para deixar minhas inquietações e dúvidas, lição esta que aprendi com a minha orientadora Maria Lucia Rodrigues, em meu Doutorado em Serviço Social PUC/SP, comecei a ouvir um som que emanava de minhas aprendizagens religiosas, ao longo da vida: era preciso aprender a “cuidar” dos inimigos, se quisesse ganhar essa luta.

Sempre me indignei com essa proposta, apesar de buscar caminhos para cumpri-la. Lentamente comecei a entender que com esse “outro estado reativo”, interpolaria uma resistência: o inimigo esperaria por ataque, o contrário me daria mais chance de sair vencedora nessa peleja.

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Na sequência, e aproveitando o espírito da época, me ocorreu o próprio processo de imunização: não era esse o caminho percorrido pelo cientistas para a criação de vacinas? Inocular o inimigo, inativo ou como código “artificialmente criado”, como maneira de desenvolver um incremento das defesas naturais do corpo, diminuindo assim, ou neutralizando, no melhor dos casos, os ataques dos inimigos virais, pois essa é a proposta científica de vencer a peleja epidêmica ou pandêmica.

Voilá, como dizem os franceses, achei a linha de compreensibilidade que quero compartilhar com vocês e desejo, assim, contribuir para uma efetiva imunização pessoal e coletiva para tempos tão medonhos, como esses que estamos atravessando.

A ousadia do posicionamento pessoal em face ao sofrimento relacional: aprendendo a ter inimigos

Nosso processo primário de socialização foi todo baseado na luta pela sobrevivência e pelo afeto, daí porque queremos ter e ser amigos.

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Por que é difícil lidar com os nossos inimigos?

Logo… ter inimigos, passa a ser uma batalha pessoal grande, e que para muitos se torna uma tarefa hercúlea, quase impossível. Afinal, nesse campo das inimizades aparecem elementos como rejeições, exclusões, violências, campo de batalhas para poucos.

Acresça-se a isso tudo, o fato de que na socialização secundária, entram em cena as outras instituições anexas à família: escola, igreja, agremiações etc que possuem códigos de condutas e pautas relacionais que, o mais das vezes, são impeditivos do campo dos desafetos.

Enfim, somos socializados para não ter inimigos, apesar de os granjearmos sempre, em nossas trocas relacionais, ao longo de toda a nossa existência. A nossa sombra humana e social encampa os sentimentos hostis que povoam nossas pessoalidades e nossas relações, eis um dilema de grandes proporções para nosso psiquismo e para nossas relações, tendo em vista o nosso universo aprendido de evitação das inimizades.

Então mais cedo ou mais tarde, até a mais pacificada das pessoas se vê, em algum momento do viver, de maneira indignada, revoltada, irada e agressiva contra o “outro”.

E percebe-se que se o treino a inibir tais sentimentos foi muito grande, presenciaremos muitos problemas pessoais e relacionais brotarem, desde somatizações de mal-estares: “quando a boca cala o corpo fala”, até o desenvolvimento de máscaras e hipocrisias relacionais, que procuram “disfarçar” mágoas, rancores e ódios reprimidos e não autorizados a se expressarem.

Como lidar com os meus inimigos?

Surge então a pergunta que não quer calar, como então agirmos, quando pudermos assumir, ousadamente, que temos inimigos. Ou seja, que temos pessoas das quais discordamos de suas posturas e ações que incidem sobre nós, ou sobre nossas relações, causando danos das mais variadas ordens, e com isso se criando um campo de tensões e batalhas relacionais?

Amontoando brasas na cabeça do inimigo: me imunizando contra o mal experimentado

Longe de pensar em exigir, de qualquer um de nós, uma postura asceta, iluminada e quase não humana, que seja capaz de expropriar de nossa mente qualquer sentimento negativo em face aos nossos desafetos, proponho agora um caminho de apropriação dos sentimentos e de aprendizagens para minimização de danos, no exercício que nos conduza à coconstrução de uma cultura de paz.

Como lidar com nossos inimigos: primeiro passo é assumir que os tem

Começando pelo direito de assumir que temos inimigos sim, que há pessoas que nos fazem mal e a quem não queremos, nem devemos querer bem. O segredo está em buscar caminhos que nos imunizem dos danos promovidos por tais relações. Afinal, a raiva, o ódio e o ressentimento, naturalmente emanados nos embates relacionais, intoxicam nosso ser e nossas relações, além de nos manter “unidos” aos inimigos.

O primeiro ponto da “rota protetora” é o cuidado e a vigilância, se sabemos dos perigos de algumas relações, precisamos nos manter, sim, em guarda, será necessário manter a autodefesa e a autoproteção, e é fundamental que não sejamos ingênuos, o que nos fará negligenciar os cuidados frente a possíveis ataques. Lembram que falei sobre o fato de “precisarmos aprender as lições das pedras”, no texto anterior? “Hay que ser duros e resistentes”, se queremos fazer fluir o rio de nosso bem-estar.

Outro ponto importante será gerar a imunização aos ataques do outro, a partir de uma postura de luz frente às trevas: ouvir e até atender algumas das necessidades de nossos inimigos, poderá nos transformar em pessoas de superação, de resistência frente ao mal praticado, sem nos obrigar, contudo, a gostar deles.

Assim procedendo, teremos devolvidos o valor, a dignidade e a autoconfiança que os inimigos insistem em usurpar de nós, somos quem somos, e precisamos nos assegurar de nosso mundo, no qual nos definimos, a partir de nós mesmos e dos bons afetos, não precisando assim ser definidos por quem nos faz mal e por suas práticas destrutivas.

E para terminar…

A proposta dessa reflexão é muito difícil de ser executada, precisaremos ter muita disciplina e sermos possuidores de uma capacidade redobrada para nos perdermos e nos relocalizarmos nela. Ou seja, será fundamental que continuemos tentando aprender a lidar com nossos inimigos, de modo a proteger nosso mundo e o mundo que nos cerca.

Quero trazer uma linda canção bússola, criada por pessoas que se utilizam da arte como instrumento de luta, no nosso caso hoje o Chico César e o Zeca Baleiro na canção “Lovers”. Que ela nos conduza! Assista ao clipe.

Fatima Fontes, Psicóloga Clínica pela UFPE, Especialista em Psicodrama e Terapia Familiar; Mestre em Psicologia Social PUC/SP; Doutora em Serviço Social PUC/SP, com Estágio de Estudos de Doutoramento no Centre Edgar Morin, Paris, Doutora em Psicologia Social, USP. Pesquisadora do Laboratório de Psicologia Social da Religião- PsiRel USP. Professora de Pós-Graduação e Coautora e Co-organizadora de vários livros: Ex: Religiosidade e Psicoterapia, Editora Roca 2008