Como não voltar a cheirar cocaína?

Duas ou mais formas de tratamentos concomitantes podem ajudar a evitar recaídas no consumo de cocaína   

E-mail enviado por um leitor:

“Sou usuário de cocaína desde 2013, já fui internado duas vezes. Estou limpo há quase dois anos. Frequento um grupo de autoajuda, por causa da pandemia, agora online (NA) e a pessoa que me aconselha e me apoia, é um ex-dependente. Ele largou há 20 anos a cocaína, mas me disse que até hoje sente vontade. Confesso que essa afirmação dele me desmotivou bastante… Pego meu salário e entrego-o todo a minha mãe e vou pegando dinheiro aos poucos, isso para não poder comprar a droga… Tenho medo de ficar de saco cheio e voltar… O que o senhor me aconselha? Até mesmo para diminuir a depressão e a ansiedade?”

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Resposta: Você merece congratulações por estar há dois anos abstinente. Trata-se de uma vitória! No entanto, respaldando o comentário do seu padrinho no NA, as batalhas contra a fissura pela cocaína e contra a sensação de perda do controle diante da substância provavelmente continuarão. A sua adesão ao NA deve ser mantida, dado o sucesso atingido até então.

Para evitar recaídas, é preciso um tratamento cognitivo constante  

Nos casos de Síndrome de Dependência de cocaína instalados, o forte desejo de usar a substância pode permanecer por anos após o último consumo. O tratamento que é feito, sob diferentes perspectivas, visa a munir o usuário de ferramentas comportamentais e cognitivas para driblar e impedir as recaídas. Por isso, o treinamento cognitivo constante é o coração do tratamento eficaz.

Por que as pessoas recaem? 

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Comumente, tanto a vontade de sentir o “high” da cocaína quanto os eventos negativos experimentados na vida são, a grosso modo, poderosos gatilhos para os lapsos e recaídas. Daí a necessidade da constante automonitorização e tratamento continuado.

Os tratamentos disponíveis para a Síndrome de Dependência de cocaína resumidamente consistem em psicoterapias específicas, grupos de mútua ajuda (tipo NA), tratamentos médicos especializados para controlar a impulsividade e manejar outros sintomas coexistentes entre os portadores da Síndrome de Dependência. Como eu tenho escrito inúmeras vezes no site Vya Estelar, não existem medicações comprovadamente eficazes e seguras para o tratamento específico desta Síndrome de Dependência até o momento. Apesar disso, existem medicações que tratam transtornos coexistentes, como depressão, ansiedade e impulsividade.

Fatores internos que levam à perda de controle sobre a droga

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A perda do controle diante da substância pode estar relacionada com fatores internos (ansiedade, depressão, impulsividade) e externos (tais como eventos estressantes ou estímulos que eram previamente relacionados com os efeitos da cocaína). Desta forma, exposição aos estímulos relacionados com o uso da cocaína (por exemplo, visitar um local onde a droga era usada) pode provocar uma intensa fissura e precipitar a recaída. As memórias associadas com tais estímulos são persistentes e refratárias ao esquecimento e à extinção.

Dito isso, alguns autores têm promovido a ideia de que a Síndrome de Dependência de Cocaína também seja uma doença da memória e do aprendizado. Isso parece ser um paradoxo à medida que o uso continuado da cocaína causa notável declínio cognitivo (prejuízos na memória, atenção, julgamento, autorregulação). 

Estudos recentes têm investigado o papel do hipocampo, a principal região cerebral envolvida com as memórias associativas e declarativas, nas propriedades de reforço para o uso continuado da droga. É importante ressaltar que esta estrutura cerebral – hipocampo – é anatomicamente e funcionalmente integrada ao famigerado sistema de recompensa cerebral. Notavelmente, em estudos experimentais (com roedores), a infusão de cocaína aumenta a atividade das células hipocampais e modifica a plasticidade neuronal.

Estudos investigam o papel do hipocampo, principal região cerebral envolvida com as memórias associativas, em relação ao uso contínuo de cocaína

Estudos investigam o papel do hipocampo, principal região cerebral envolvida com as memórias associativas, em relação ao uso contínuo de cocaína 

O hipocampo é claramente requisitado para a aquisição, consolidação e recuperação da memória e, também, está envolvido nas experiências associadas com o uso de cocaína. Isso pode ser ilustrado através de estudos clínicos de imagem cerebral que têm mostrado um aumento da atividade hipocampal, quando indivíduos já dependentes são expostos a estímulos associados com o uso da cocaína.

Nós devemos considerar, brevemente aqui, que os neurônios hipocampais são continuamente gerados na chamada zona sub-granular do giro denteado. Este processo de neurogênese ocorre em um complexo e sensível ambiente, com influência de diferentes neurosubstâncias, fatores inflamatórios e fatores de crescimento. Estas células, em cada etapa do seu crescimento e maturação, exibem propriedades fisiológicas distintas, padrões diversos de expressão e graus variados de integração com outras células neurais. Portanto, os eventos de proliferação, diferenciação, maturação e sobrevivência das células podem ser afetados por fatores múltiplos, inclusive substâncias exógenas. Em estudos pré-clínicos, a cocaína inibe a proliferação das novas células no dito giro denteado; em animais, esta reduzida neurogênese hipocampal produz um aumento nos comportamentos de busca pela droga, já que ocorre uma certa manutenção daquelas células “ensinadas”.

Como a cocaína ‘estabelece sua dependência’

Assim, a comunidade científica tem proposto que a reduzida neurogênese hipocampal saudável é um potencial mecanismo pelo qual a cocaína estabelece a sua dependência. Contudo, estudos também têm mostrado que neurônios gerados antes da exposição à droga exibem melhor maturação e integração funcional em animais que começam a fazer uso da cocaína e  estão “abertos” à associação mental entre o uso da droga e determinados estímulos ou situações. Assim, por prejudicar a neurogênese hipocampal, a cocaína poderia provocar importante declínio cognitivo; por outro lado, ao usar cocaína, neurônios já existentes e aqueles que conseguem sobreviver “aprendem” sobre o uso da cocaína e registram a atividade do uso como prazerosa. Para recuperar a memória mais saliente, que é a do prazer do consumo, basta um estopim.

Em resumo, tem sido proposto que o uso de cocaína toma vantagem sobre os mecanismos hipocampais no processamento da aprendizagem e da codificação das memórias associadas com o uso da substância. Por outro lado, esta desregulação dos sistemas hipocampais por tempo prolongado resulta em problemas com a regulação do aprendizado normal e subsequente declínio cognitivo.

Tanto a proliferação, a sobrevivência e a maturação das células geradas no núcleo denteado dependem de estímulos neuroquímicos. Infelizmente, a cocaína atinge em cheio esta localização cerebral, desregulando as substâncias mediadoras da neurogênese. Tais substâncias mediadoras podem ser aqui sumariamente citadas: dopamina, serotonina, norepinefrina, endocanabinoides, fatores inflamatórios, dentre outros. Outrossim, a cocaína exerce diretamente ação sobre os novos neurônios, à medida que penetra na circulação sanguínea.

Portanto, o seu padrinho do NA está correto. A saliência da memória para o uso da cocaína é por demais intensa e pode durar décadas. Continue o seu tratamento. Caso esteja apresentando sintomas “perigosos” (cansaço, depressão, “vazio”, necessidade de sentir prazer etc), compartilhe tais sintomas com o grupo de mútua ajuda e procure tratamento médico especializado.

Na comunidade científica, também existe uma forte opinião de que duas ou mais formas de tratamento concomitantes para o manejo das Dependências Químicas tendem a ser mais eficaz do que uma única forma de tratamento isolada. Boa sorte!

Atenção!
Esta resposta (texto) não substitui uma consulta ou acompanhamento de um médico psiquiatra e não se caracteriza como sendo um atendimento.


Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Professor de Psiquiatria do Centro Universitário Faculdade de Medicina do ABC. Pesquisador nas áreas de Dependências Químicas, Transtornos da Sexualidade e Clínica Forense.