Como um pêssego pode te levar à autoaceitação?

Você se recusa em se aceitar como você realmente É? Se incomoda em olhar para suas marcas, feridas de experiências vividas? Um simples pêssego de supermercado pode te trazer profundas lições sobre isso; entenda          

Aproveitei a estação do ano propícia e comprei uns pêssegos. Fui comê-los e percebi que vários tinham uma consistência (e um gosto) de isopor. Mas o que me chamou a atenção realmente foi a aparência das frutas. Nenhuma delas possuía qualquer irregularidade, nenhum ferimento antigo, nenhum traço de qualquer agressão durante o processo de amadurecimento. Eram todas bebês.

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É verdade que alguns tinham aqueles amassados típicos do manuseio, porque o pêssego é uma fruta sensível. Mas esses em geral deixamos de lado ou quando notamos o problema em casa, comemos logo para que não apodreçam. O que os pêssegos não possuíam era qualquer dessas irregularidades típicas de uma vida pré-supermercado. Quer dizer, não se notava qualquer irregularidade ou marca de uma picada de mosca, de uma dentada de algum pequeno inseto ou mesmo bicada de pássaro. Não havia neles nenhuma cicatriz.

Percebi, então, que essa perfeição é um padrão de consumo mais amplo. Não queremos comer frutas que possuam alguma marca, mesmo que isso não altere seu sabor ou sua natureza. Não gostamos de encontrar em nada que compramos um arranhão, uma nicada, um amassado, um risco – algo que revele uma vida passada, um uso anterior ou um contato com outros seres que não nós. Queremos bebês recém-nascidos.

Assim, se percebe que nós procuramos uma forma de integridade e originalidade que simplesmente não faz parte de estar no mundo. Isso independente de se tratar de algum ser vivo, uma mercadoria ou outro ser humano. Queremos algo que não tenha sido tocado pelo tempo, pela presença dos outros, pela inconstância da vida, pelos acidentes do espaço etc.

Antiautoaceitação: busca pela perfeição

Esse desejo por uma espécie de pureza etérea que nos orienta é uma rota segura para o fracasso e para a decepção: uma busca por algo que não pode existir nesse mundo. Afinal, nós não somos assim. Não somos virginais, não somos intocados, não somos eternos. Somos o resultado de uma série de interações que nos arranham, marcam a nossa superfície corporal e nossos sentimentos menos visíveis.

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Mais do que isso: se há alguma virtude em nós – seres humanos – se há algo que nos torna dignos de consideração não é pela capacidade de nos mantermos eternos, intocados, infantis ao longo de nossas vidas. O que nos torna interessantes – se o somos – é justamente o fato de sermos o resultado desses choques, desses pequenos ou grandes conflitos, dos resvalões que nos damos, dos erros que vamos cometendo e que passam gradualmente a nos constituir. São justamente os amassados e bicadas que nos tornaram o que somos agora: arranhados pela experiência.

E se buscamos algo que tenta evitar esses conflitos, esses choques, é porque de alguma forma eles nos parecem negativos. Isso quer dizer que avaliamos como indesejável justamente aquilo que nos tornou o que nós somos hoje. Trata-se, enfim, de uma forma de desprezo por si mesmo, de um juízo negativo acerca daquilo que nos fez o que somos. Depois dessa constatação simples, passei a procurar frutas com aparência pior, que não deixem transparecer que são filhas dos deuses, mas mortais como eu mesmo – meio lanhadas pelo tempo, meio arranhadas e gastas como nós todos. É um gesto de amor próprio comer pêssegos amassados. Não me interesso pelo ouro que não enferruja, nem pelos amigos constantes que nunca falham, nem por deuses perfeitos. Só procuro um pêssego já bicado por um pássaro e sem sabor eterno do isopor.

Ronie Alexsandro Teles da Silveira é professor de filosofia e trabalha na Universidade Federal do Sul da Bahia. Mais informações: https://roniefilosofia.wixsite.com/ronie

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