por Monica Aiub
Muitas vezes, no consultório de filosofia clínica, é possível observar como conceitos provocam sensações, emoções, e como as sensações provocam conceitos.
Nosso pensar e nosso sentir parecem estar totalmente conectados, ou ainda, serem apenas diferentes manifestações de um mesmo processo.
O fato de pensarmos de modo diferente acerca de nossas questões, muitas vezes implica em alterações em nossas sensações: sentimo-nos bem ou mal, de acordo com a forma de pensar; mas também pensamos diferentemente quando nossas sensações se modificam.
Esta questão, já abordada em outros artigos, é chamada, em filosofia da mente, de causação mental. Um antigo problema filosófico que permanece, ainda hoje, sem solução. Conseguimos perceber as interações entre nossos estados mentais e nossos estados físicos, mas não conseguimos explicar como ocorrem as interações.
Percebemos que a experiência estética, por exemplo, é capaz de gerar novas ideias, provocar a pensar o mundo e a vida de maneira diferente, criar novas formas de viver; mas não conseguimos explicar como isto é possível. Do mesmo modo, percebemos que conceitos filosóficos podem trazer alento ou perturbação, podem gerar estados corporais diversos. Você já sentiu prazer com uma boa leitura, a ponto de alterar suas sensações corporais? Ou ainda, já ouviu determinadas ideias que lhe causaram tanto asco a ponto de sentir-se, literalmente, enjoado?
Levando ao extremo a ideia, uma boa música, um belo quadro, um bom livro, um bom filme, poderiam ter um caráter curativo?
Poderiam alterar nosso organismo de modo a gerar ou curar doenças?
Pitágoras, na Antiguidade, já suscitava a possibilidade, afirmando ouvir a "música das esferas celestes" e ser capaz de "alterar os estados da alma" tocando a sua lira. Diziam os pitagóricos que ele, de fato, fazia isso. Mas a questão que se coloca diz respeito à possibilidade de nos afetarmos via sensações, de tal modo que nossas ideias também sejam afetadas. E no outro extremo, dos conceitos nos tocarem a ponto de resultarem em sensações.
Você já se apaixonou por uma ideia? Tal como se dá ao se apaixonar por alguém, ficou pensando o tempo inteiro naquela ideia, ocupando sua vida com ela? E ainda, esse apaixonar-se foi suficiente para transformar-lhe, dando novo sentido à sua existência, trazendo sensações aprazíveis, e por vezes até um certo sofrimento ao não vislumbrar formas de realizar sua ideia? Já foi impactado por palavras de modo a alterar completamente seu estado corporal? E, diante da percepção de tal impacto, já se perguntou como isso é possível?
As teorias da mente tentam explicar esse fenômeno, mas as explicações até então construídas deixam, ainda, algumas brechas. As pesquisas em neurociência também apresentam explicações, mas ainda incipientes. Sabemos que movimentações ocorrem em nosso cérebro, e essas geram tais processos. Mas o que são essas movimentações? O que justifica relacionar tais relações às movimentações existenciais observadas, não foi ainda apresentado, continua sendo matéria de pesquisa. A conversação entre a filosofia da mente e a neurociência é, nesse sentido, muito rica, propiciando avanços em ambas as áreas.
Observando os fenômenos apresentados na clínica filosófica, juntamente com os relatos da historicidade da pessoa, que descrevem não apenas o vivido, mas as sensações, as ideias, e todo o processo pelo qual a pessoa se constitui, é possível, ainda, acrescentar uma perspectiva a ser considerada, contribuindo para uma abordagem transdisciplinar, capaz de abarcar o problema de modo mais amplo.
"Conceitos que sentem, afetos que pensam" é o título do livro que apresenta algumas pesquisas do grupo de estudos sobre "Filosofia Clínica, Filosofia da Mente e Neurociência" do Instituto Interseção. O objetivo do grupo é, partindo das questões clínicas, dos relatos dos partilhantes (pacientes), adentrar às questões que estabelecem interface com a filosofia da mente e a neurociência.
Um primeiro aspecto abordado por mim no livro diz respeito aos diagnósticos em clínica médica. Se considerarmos os dados a serem observados para a construção de um diagnóstico, além dos sinais constatados pelo médico e dos resultados dos exames solicitados, os sintomas, que são descrições dos estados mentais da pessoa, são importantíssimos para que se compreenda a síndrome que se apresenta. Nossas células podem comunicar algo? Ao observarmos os estados físicos e mentais da pessoa, é possível levantar algumas hipóteses clínicas? Os elementos do entorno, dos contextos vividos pela pessoa, também têm relevância para um diagnóstico? E se observarmos todos estes aspectos conjuntamente, teríamos mais elementos para compreender os processos clínicos da pessoa?
O deficit de atenção e hiperatividade é apresentado como um exemplo de conversação entre as áreas. O estudo desenvolvido por *Márcia Avelino questiona não somente os diagnósticos, mas também prognósticos e tratamentos usuais à questão.
"Traumas" é o assunto pesquisado por *Daniel Fernandes da Silva, que a partir de casos clínicos aborda conceitos filosóficos e neurocientíficos dos traumas observados na historicidade de alguns partilhantes.
"A dor afetivo motivacional" é tratada por *Almir José da Silva a partir do instrumental da filosofia clínica, que abarca, também, aspectos subjetivos da dor, que podem ser observados a partir de uma postura fenomenológica, que considere a pessoa inserida em seu universo.
"SingulArte: um estudo sobre dor e existência", de *Ricardo Soares Reis, apresenta nossas vidas como obras de arte singulares, a serem construídas cotidianamente, e questiona o papel da dor na existência humana, tendo como referências Niezsche e a neurociência. Com exemplos extraídos da literatura – Clarice Lispector, Fernando Pessoa, o autor trata a questão da perspectiva existencial.
*Carlos Copelli Neto aborda as interfacesentre as áreas a partir da "Psicologia Anomalística". Seus estudos tratam de hipóteses epistemológicas sobre experiências místicas, caminhando para a proposta de uma filosofia clínica social.
Em outro texto de sua autoria, Márcia Avelino traz uma interessante questão bioética: "E se o partilhante for um ciborgue?". Além de discutir a constituição do ciborgue, questionando juntamente com Andy Clark (professor de filosofia) se já somos ou não ciborgues, a autora apresenta a perspectiva da filosofia clínica no que se refere à subjetividade de seres híbridos.
*César Mendes da Costa aborda o caráter transdisciplinar da filosofia clínica, mostrando a importância da epistemologia no tratamento transdisciplinar às questões.
Por fim, o capítulo que dá nome ao livro: "Conceitos que sentem, afetos que pensam", de minha autoria, relaciona filosofia clínica, filosofia da mente e neurociência como diferentes e complementares instrumentos para compreender as questões humanas, e aponta para a necessidade de diálogo entre essas áreas, assim como o necessário diálogo entre arte, ciência e filosofia.
O livro é aberto e encerrado com poesia, da "Musa" de Ricardo Reis aos "Sonhos Reais" de Maria Vilani, tentando provocar no leitor, Conceitos que sentem e afetos que pensam.
Como você percebe a questão, leitor? Seus conceitos geram sensações? Seus afetos geram reflexões? Quais as consequências disso? Como você lida com isso?
Referências Bibliográficas:
AIUB, M. (Org). Conceitos que sentem, afetos que pensam: Aproximações entre Filosofia Clínica, Filosofia da Mente e Neurociência. Rio de Janeiro: WAK, 2013.
* Todos são filósofos e autores do livro Conceitos que sentem, afetos que pensam