Por Danilo Baltieri
Depoimento de uma leitora:
“Tenho epilepsia e faço tratamento com oxicarbazepina 300mg. Tomo duas vezes ao dia e faço acompanhamento. Eu sofria de crises frequentes de enxaqueca e ia constantemente a emergência para tratar a dor, e sempre me aplicavam tramadol. Em um determinado momento. as doses foram aumentando, pois meu organismo já apresentava "resistência" à dose de 50mg. Chegaram a administrar morfina endovenosa para tratamento das crises. Me apavorei com essa situação. Sou enfermeira e sei como as coisas funcionam. Foi quando iniciei uma pesquisa para tratar as crises em casa com medicações orais, e minha neurologista me ofereceu uma caixa de Sumax para que eu testasse a medicação. Deu supercerto. Iniciei a utilização de Sumax sempre que tinha crise. Porém, como é um medicamento caro, e vem apenas dois comprimidos, comecei a utilizar dorflex (dois comprimidos) logo no inicio da dor, às vezes melhorava, e às vezes não. Quando não melhorava com o Dorflex, eu tomava o Sumax, que até então, era a única medicação capaz de me tirar da crise. Minha neuro já havia me indicado Cefaliv, Cefalium, Naramig, Deocil e nada fazia efeito. Hoje, estou passando por um transtorno muito grande, uma situação que está acabando com a minha vida, meu casamento e minha alegria de viver. Tenho cefaleia todos os dias. Tomo quatro comprimidos de Dorflex, e às vezes não faz efeito e tomo Sumatriptana de 100mg. Tem dias que tenho cefaleia duas vezes. Não consigo sair, não consigo comer, não consigo trabalhar, e até deitar, porque tudo me causa dor ou piora a dor já instalada. Preciso muito de ajuda, mas estou sem plano de saúde. Estou fazendo umas pesquisas na internet para ver se consigo me ajudar a sair dessa. Gostaria muito que algum profissional visse o meu quadro e me desse uma opinião. Para me ajudar a registrar o meu dia a dia, eu baixei um aplicativo (diário da enxaqueca) para registrar as minhas dores e os medicamentos que eu fazia uso. Tem 18 dias que eu baixei o aplicativo e já registrei 18 crises de cefaleia. Por favor, preciso muito de ajuda. Desde já agradeço o desabafo.”
Resposta: O termo enxaqueca é caracterizado por crises de dor de cabeça (cefaleia) de moderada a alta intensidade, combinadas com náuseas ou vômitos, vertigem, hipersensibilidade à luz e ao som. Tais crises, comumente, pioram com as atividades rotineiras e duram, em média, de 4 a 72 horas. Cerca de 20% dos portadores se queixam das chamadas “auras,” ou seja, um conjunto de sintomas que geralmente aparece pouco tempo antes da instalação da dor de cabeça propriamente dita. A aura mais comum é a dita visual, sendo caracterizada por flashes de luz, falhas no campo visual, imagens brilhantes pulsáteis, dentre outros aspectos. Cerca de 10 a 20% dos portadores de enxaqueca crônica apresenta os chamados “sintomas premonitórios,” vivenciados até 48 horas antes do início do quadro doloroso propriamente dito. Estes “sintomas premonitórios” podem incluir fadiga, rigidez no pescoço, aumento da sensação de urgência para urinar, sensação de respiração mais difícil, dentre outros.
A prevalência média da enxaqueca crônica na população geral varia entre 2 e 4%. Já a enxaqueca aguda afeta cerca de 11 a 15% da população caucasiana. De fato, a cronicidade da enxaqueca representa sério problema para aqueles que dela padecem bem como um desafio para os centros de tratamentos dedicados ao manejo dessa doença. Comparados àqueles com enxaqueca aguda (episódica ou esporádica), os portadores de enxaqueca crônica demonstram mais prejuízos sociais e problemas econômicos, mais chance de manifestar transtornos psicológicos/psiquiátricos coexistentes (principalmente, síndromes depressivas, ansiosas e outros quadros de dor crônica), pior desempenho nas atividades laborais, mais chance de padecer de outras condições clínicas (como hipertensão, altos níveis de colesterol, diabetes, sobrepeso).
Alguns fatores de risco associados com o aumento da frequência e duração das crises de enxaqueca, inicialmente episódicas, podem ser classificados como:
a) Fatores de risco não modificáveis: ser do sexo feminino, ter familiares portadores da doença enxaqueca crônica (aspecto genético), ser da raça branca, aumento na faixa etária;
b) Fatores de risco modificáveis: sobrepeso, condições clínicas adversas (hipertensão e diabetes), uso excessivo de medicações para dor (em especial os opioides e triptanos), abuso de cafeína, problemas com o sono, consumo de substâncias psicoativas (como o álcool), síndromes psicológicas/psiquiátricas específicas (como a depressão e a ansiedade);
c) Fatores de risco ainda sob investigação (também conhecidos como fatores de risco ‘putativos’): presença de refluxo gastresofágico, baixos níveis séricos de vitaminas D e do complexo B, elevados níveis sanguíneos de fatores relacionados com a coagulação.
Manejar os fatores de risco ditos modificáveis e putativos deve ser componente essencial durante o processo terapêutico.
Portadores do quadro de enxaqueca crônica acabam fazendo uso de medicações eficazes para o controle desse tipo de dor; mas, infelizmente, não é incomum que o uso ocorra em quantidade e/ou frequência superiores às recomendadas ou mesmo terapêuticas.
Isso é compreensível, dada a intensidade e enorme desconforto provocados pelas crises de enxaqueca. Por isso, o acompanhamento com profissional neurologista especializado é altamente recomendado.
Sempre é importante notar que os tratamentos farmacológicos são ferramentas essenciais para o manejo desse problema. No entanto, o tratamento não deve encerrar-se com medicamentos. Existem abordagens não farmacológicas que devem ser também utilizadas, incluindo desde atividades físicas direcionadas e de relaxamento até terapias comportamentais.
Você comenta no seu “desabafo” sobre o uso de triptanos. Realmente, os triptanos, tais como sumatriptana, naratriptana, eletriptana, zolmitriptana etc têm sido amplamente utilizados para o tratamento de alguns tipos de cefaleias, especialmente da chamada enxaqueca aguda (crises de enxaqueca). No entanto, o consumo imoderado ou mesmo exagerado de medicações para o manejo dessa dor, como é o caso do uso dos triptanos, tem sido infelizmente reportado e verificado por vários estudos ao redor do mundo.
O que ocorre é que o uso exagerado ou mesmo desnecessário dessas medicações pode, por si mesmo, “induzir” um tipo de cefaleia crônica. Na verdade, os termos “cefaleia secundária ao uso excessivo de medicações,” “cefaleia rebote devido ao uso crônico de medicações para o tratamento da enxaqueca” têm sido mencionados comumente na literatura especializada. Mas, de qualquer forma, esse quadro de enxaqueca crônica secundária ao uso exagerado de triptanos apenas surge depois do portador de um quadro de enxaqueca genuíno começar a fazer uso destas medicações prescritas.
Alguns critérios têm sido utilizados para caracterizar este quadro de cefaleia crônica secundária ao uso de medicações, tais como:
a) Cefaleia presente por pelo menos 15 dias por mês;
b) Uso regular de uma ou mais medicações para o tratamento da enxaqueca (uso regular pode ser definido como o consumo destas medicações por 10 ou mais dias por mês durante, pelo menos, 3 meses);
c) Piora da cefaleia após o consumo imoderado ou inadequado das medicações;
d) Retorno ao padrão clínico anterior ao uso destas medicações após dois meses de interrupção do consumo.
É importante notar aqui que existem vários tipos de cefaleia e de enxaqueca e que a enxaqueca crônica secundária ao uso exagerado de medicações (no caso desta pergunta, dos triptanos) é apenas um destes tipos. De fato, associações médicas internacionais reconhecem mais de 300 tipos de cefaleias, classificando-as em primárias ou secundárias. As primárias são, em si mesmas, doenças; já as cefaleias secundárias são relacionadas a algum outro problema que as gera, como, por exemplo, o consumo de algumas medicações.
Entre os portadores de enxaqueca secundária ao uso de medicações, a conduta é a retirada do fator causal (ou seja, das medicações). O objetivo não é somente a interrupção dos triptanos (ou outras medicações causadoras), mas sobretudo, aumentar a capacidade do portador para responder a outras formas de tratamento e manejo médico.
A descontinuação das medicações associadas ao quadro de dor pode provocar alguns sintomas bastante desagradáveis, tais como:
a) piora do quadro de dor;
b) taquicardia;
c) alteração da pressão arterial;
d) náuseas e vômitos;
e) perturbação do sono;
f) ansiedade e inquietação psicomotora.
Nesta difícil fase de retirada dos triptanos, que varia de 4 a 8 semanas, as recomendações farmacológicas para aliviar os sintomas têm sido bastante diferentes, de acordo com distintos serviços médicos e pesquisas clínicas. Medicações têm variado desde anti-inflamatórios comuns até a prescrição de corticoides.
Você deve estar sendo acompanhada por médico neurologista. Converse com ele sobre as possibilidades de manejo terapêutico durante esta fase de retirada, bem como sobre os planejamentos terapêuticos para a continuidade do tratamento da sua enxaqueca depois da retirada destas medicações. Siga as recomendações do seu especialista. Tente investigar rigorosamente os fatores de risco que contribuem para o recrudescimento das crises. Após a identificação destes fatores de risco, trate-os a contento. Boa sorte !!!
Atenção!
Este texto não substitui uma consulta ou acompanhamento de um médico psiquiatra e não se caracteriza como sendo um atendimento.