E quando as folhas e os pratos caem… O que fazer?  

Se as folhas e os pratos caem, não devemos ficar presos às falsas ilusões das permanências e sim ficarmos receptivos às mudanças acolhendo-as

Introdução

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“Em momentos como este, precisamos deixar de ser escravos da ilusão e compreender o que nossas imagens significam em termos humanos, para podermos usá-las como mapa para o tipo de autoconhecimento essencial para a construção de um mundo melhor.”
(Livro – A Velha: mulher de idade, sabedoria e poder. Lavras, MG: A Senhora Editora, 2001).

Pois é, já estamos no ano de 2022, e as promessas que fizemos para esse novo ano, como andam? Prometemos coisas extraordinárias a nós mesmos? Estabelecemos alvos “perto do inatingível”? Não se preocupe, essa “ilusão” é universal e acomete a todos os seres humanos, em todas as culturas, sejam elas regidas pelo calendário cristão, judaico, chinês, ou qualquer outro, sempre haverá uma transição de tempos, onde se deseja recomeçar para melhor.

Porém, acabamos, todos montando um cronograma de ano novo bem cheio de promessas que ancoram altas expectativas, o mais das vezes ilusionais. E é sobre esse excesso ‘ilusional’ de expectativas que quero refletir nesse primeiro texto do ano de nossa coluna Nós e Nossos Vínculos.

Desejosa de contagiar vocês com a noção que abrigo em mim de que se aceitarmos que em nosso viver, tanto quanto em nossos vínculos, as folhas caem e os pratos também caem, os convido a um pensar e agir mais humanos, e menos carregados de ilusões, e com chances de nos orientar para um novo ano com novas e melhores aprendizagens.

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Por que as folhas caem?

Os ciclos das mudanças e alternâncias são necessários

Estava correndo numa avenida da agitada São Paulo, em que há árvores centenárias sobre os transeuntes e corredores, nos lembrando a todos que nem tudo é asfalto, e nem tudo é expansão imobiliária, por aqui… quando folhas carinhosamente caíram por sobre quem passava, trazidas por uma brisa suave, entre carros e semáforos que insistiam em trafegar.

Daí, pensei: é isso, os ventos e brisas fazem as folhas cair e elas precisam cair para que haja novas folhas, nos ciclos de folhas que caem, para que flores surjam dos Ipês coloridos Paulistanos apareçam, ou seja, dei boas-vindas às folhas que caíam, era bom e necessário que isso acontecesse.

E em nossas relações e mundos pessoais, conseguimos dar boas-vindas às folhas que caem? Temo que não. Parece que insistimos, em nos iludir com as “falsas ilusões” das permanências. Talvez porque elas nos deem a falsa segurança de controles sobre a nossa vida e sobre a vida do outro.

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Daí o que acontece, o mais das vezes? Vemos os ciclos, tão necessários de mudanças e alternâncias, ser estancado. Queremos, parece, o momento anterior, a vida anterior: de vínculos e ritmos. Por exemplo: se nossos filhos iniciam a fase ‘interminável’ de (des)envolvimento, é comum, que mães, que decidem ter nas crias o seu ‘ofício’, ou que mesmo não optando por isso, idealizam filhos ‘perfeitos’, comecem a sofrer pelo crescer e ‘se transformar’ dessas crianças, em adolescentes bombardeados por hormônios e se tornando ferrenhos questionadores das muitas ambiguidades parentais…. e por aí segue a toada da vida.

Você tem preguiça de fazer novos desenhos para a vida?

Quem sabe, haja, também um outro fator, para não desejar que folhas caiam: a ‘preguiça’ de fazer novos desenhos para a vida, afinal mudar é caótico, afirma o ‘pensamento complexo’ de Edgar Morin. A vida, tecida em fios, traz a inevitável incerteza e necessidade de mudança, somos assim, desafiados a mudar de ideias, de planos, mas parece que resistimos ao novo, temendo que ele ‘enfeie’ ou derrube nossos lindos castelos de areia.

Entremos agora na segunda parte da reflexão, se resistimos aos ciclos, de certa forma naturais de mudança do e no viver, que dizer das mudanças mais externas, essas que acontecem ao nosso redor, e que nos atingem?

É sobre isso que vamos refletir abaixo, afinal não só as folhas caem, também os pratos caem.

Por que os pratos caem?

Por uma simples razão: porque somos humanos. Você tem a capacidade de elogiar os pratos que derrubou?

Creio que os pratos caem, primeiramente, porque somos imperfeitamente humanos, e por mais que obsessivamente, persigamos idealizada e neuroticamente a perfeição, ela é impossível de ser alcançada e mantida, que nos falem sobre isso os humanos campeões, seja de que categoria competitiva seja.

E ‘acolher’ segundos lugares e terceiros, e menos ainda ficar fora do pódio da vida, fere nosso narcisismo estrutural. Não aprendemos a acolher nossos erros e imperfeições, desde muito cedo, em nossas socializações, que põem lentes de aumento no menor erro que seja cometido: um leite que entorna da xícara, um tombo que se leva, uma postura errada que se tenha no aprender, no agir e no pensar… a lista de críticas e broncas nos é apresentada, a cada manhã de forma sistemática e persistente em nossas infâncias… e vida a fora.

Elogiar pelos ‘pratos que derrubamos’, é lição que humano nenhum teve, em cultura ou tempo algum. Acolher erros como caminhos de acertos, talvez seja o maior desafio da vida relacional humana. O mais das vezes nem percebemos que não elogiamos quase nada do outro com quem convivemos, já o apontar suas falhas, erros e aquilo que consideramos inadequado, superabunda em nosso viver relacional.

Lástima total, afinal, para cada escolha que fazemos, deixamos de fazer outras coisas, melhor dizendo, deixaremos pratos cair, quer queiramos, ou não. Nosso grande desafio está em juntarmos os cacos, num exercício de Kintsugi, arte japonesa de repara uma cerâmica quebrada, com fios de ouro, e é sobre essa “arte” que falaremos a seguir.

Por um mundo relacional entre folhas e pratos caídos: desenvolvendo Kintsugi

Pois é, essa história do kintsugi, existe há centenas de anos, conta-se que um imperador, ao ver cair e quebrar em pedaços um de seus utensílios usados na cerimônia do chá, exigiu de seus artesãos não só a restauração das peças, mas que ela fosse feita com a melhor técnica possível de reparação.

O resultado encantou o imperador e pode ser metáfora para nós acerca de erros e falhas que cometemos, até hoje. A obra foi restaurada de uma maneira tal, e ficou tão bem feita, que produziu um impacto estético, em todos os que a viram, visto que os artesãos não correram para ‘esconder’ as lascas quebradas, ao contrário, percorreram as ‘falhas’ e ‘cacos’ com pós de ouro, produzindo uma nova peça, muito bonita, na qual as ‘cicatrizes’ do erro e acidente, se tornaram a maior beleza da peça.

Não poderia ser essa a nossa ‘nova rota’ frente aos erros, e cacos quebrados, folhas que caíram, em nossas vidas e relações? Proponho que sim, mas para isso, alguns passos precisarão ser dados.

O primeiro deles fala de ‘recolher’ cuidadosamente, os cacos, e lançarmos fora o jogo de culpados que sempre acontece, quando as coisas dão errado. A ‘culpa’ é sempre buscada, o objeto foi mal pego, não houve perícia, atenção, e por aí vão as intermináveis acusações e autoacusações pelos erros cometidos.

Na metáfora do kintsugi, parece que os artesão acharam a busca por culpados ‘total perda de tempo’. Entenderam que a sua primeira tarefa era ‘recolher os cacos’, não se interessando pela ‘acareação dos erros’. Excelente primeira dica para nós: como perdemos tempo e nos perdemos nos labirintos culposos dos erros cometidos, ou por nós ou pelos outros. Precisamos aprender a ‘recolher’ os cacos.

A próxima ação a ser exercida, precisará ser a ‘busca do pós de ouro’, que em termos de erros humanos, poderá corresponder a aprender a localizar as ‘aprendizagens a partir dos erros’, em que nos tornamos ‘melhor’ por termos falhado? Esse é o pó de ouro que pode tornar nossas ‘cicatrizes’ de imperfeição lugares de valorização e gratidão.

Há na Bíblia Sagrada Cristã, um versículo, que me serve como mantra: “Em tudo dai graças”, ou numa outra tradução: “deem graças em todas as circunstâncias…” (I Tessalonicenses 5:18), uso esse verso à exaustão… às vezes entre lágrimas… e identifico na ‘gratidão’ a maior das possibilidades de juntarmos nossos cacos.

Sem nossos erros e sem os erros dos outros, não avançaríamos individual e coletivamente como humanos. Nos tornaríamos em ‘peça de manobra’, relacional, faríamos o que nos ‘programaram para fazer’, sem podermos errar, ou questionar.

Proponho, então, que nosso kintsugi pessoal e relacional seja agradecer e dar as boas-vindas às nossas folhas que caem e aos nossos pratos que quebram, só assim poderemos ser mais belos como humanos feridos e cicatrizados, sensíveis e proativos no solucionar nossos problemas.

E para terminar…

Há uma “promessa de vida no teu coração”, assim canta Tom Jobim, nos falando sobre as “águas de março”, que trazem: pedra, cobra, fundo do poço, fim do caminho, garrafa de cana, estilhaço na estrada, carro enguiçado, lama e espinho na mão, mas que nos asseguram, num ‘ciclo virtuoso’ que há uma promessa de vida para cada um de nós, seja qual for o nosso ‘tempo’ vivido.

Vamos acompanhar a canção e deixar os pratos caírem?

Os ‘pó de ouro’ existem para usarmos! Gratidão por tudo e por sua leitura deste texto!

Fatima Fontes, Psicóloga Clínica pela UFPE, Especialista em Psicodrama e Terapia Familiar; Mestre em Psicologia Social PUC/SP; Doutora em Serviço Social PUC/SP, com Estágio de Estudos de Doutoramento no Centre Edgar Morin, Paris, Doutora em Psicologia Social, USP. Pesquisadora do Laboratório de Psicologia Social da Religião- PsiRel USP. Professora de Pós-Graduação e Coautora e Co-organizadora de vários livros: Ex: Religiosidade e Psicoterapia, Editora Roca 2008