por Elisandra Vilella G. Sé
Desde antiguidade até tempos atuais se discute o papel da memória numa concepção filosófica para exercício permanente da razão e da transcendência.
A memória tem seu papel também na busca da sabedoria e manutenção da indentidade. Somos o que recordamos. Na obra Confissões de Santo Agostinho dá-se o início de uma questão filosófica e sistemática de interioridade e memória. Para ele a memória é explicada numa busca interior, numa introspecção a serviço do autoconhecimento. Em um trecho de sua obra podemos encontrar as indagações que Santo Agostinho faz ressaltando que interioridade e memória estão sempre juntas:
Não é de admirar que esteja longe de mim tudo o que não sou eu. Todavia, que há de mais perto de mim do que eu mesmo? Oh! Nem sequer chego a conhecer a força (vis) da minha memória, sem a qual não poderei nem dizer mesmo eu! Que direi eu, pois, quando tenho certeza de que me lembro do esquecimento? Poderei afirmar que não existe na minha memória aquilo de que não lembro? Ou então, que o esquecimento está na minha memória, para que o não esqueça? (AGOSTINHO, 1973, X, 16, 25).
Seu pensamento que é formado na base do diálogo da alma revela que a memória é introspectiva por excelência. As lembranças pessoais, a memória individual não está restrita a conteúdos, conhecimentos, mas também ajuda a construir uma compreensão de si mesmo. A compreensão que integra razão, vontade, fé, atitudes, sentimentos. A autorreflexão só é possível com a memória. E essa autorreflexão é o caminho para encontrar a verdade. Para Santo Agostinho, a verdade é encontrada no interior do ser humano pelo conhecimento humano, no intelecto.
Mas para se chegar à Verdade é necessário ter fé; no entanto, não basta apenas conhecer a Verdade, mas sim possuí-la pelo amor. Por meio da fé chegamos à Verdade. A inteligência e a sabedoria nos fazem descobrir nela o sentido; a primeira por uma visão simples, antes de tudo especulativa; a segunda por um juízo de valor inspirador.
Para Santo Agostinho, as verdades da fé não são atingíveis pela razão, mas acreditava ser possível demonstrar o acerto de nelas se crer. Fé e razão guardariam, portanto, estreita relação, daí a sua máxima, inspirada num versículo de Isaías (7; 9): “compreende para crer, crê para compreender”.
E a memória?
A ideia popular e ampla de memória que temos é a da abordagem neurocientista de que memória é a faculdade de reter ideias, impressões, adquirir conhecimentos, é conhecida por nós como a propriedade de tornar o passado em presente.
Por memória ainda pode-se entender a capacidade que possui o espírito de fixar, conservar e reproduzir, sob a forma de lembranças, as impressões experimentadas anteriormente. A memória abrange todo o campo da vida psíquica. A memória compreende as seguintes capacidades: fixação, conservação, evocação, reconhecimento e localização.
A memória apresenta os seguintes tipos principais, caracterizados pelo predomínio de certas imagens: memória sensível, memória intelectual, memória afetiva. A memória é uma evocação do passado. É a capacidade humana para reter e guardar o tempo que se foi, salvando-o da perda total. A lembrança conserva aquilo que se foi e não volta mais. Como consequência da diferença temporal – passado, presente, futuro – a memória é uma forma de percepção interna chamada introspecção, cujo objeto é interior ao sujeito do conhecimento: as coisas passadas lembradas, o próprio passado do sujeito e o passado relativo ou registrado por outros em narrativas orais ou escritas.
A memória não é um simples lembrar ou recordar, mas revela uma das formas fundamentais de nossa existência, que é a relação como o tempo, e, no tempo, com aquilo que está invisível, ausente e distante, isto é, o passado.
Assim, o papel da memória no exercício da autorreflexão por meio das recordações conscientes é importante para o fenômeno do autoconhecimento. Não podemos conhecer ou reconhecer se não recordamos.
A memória é que orienta o dinamismo cognitivo e volitivo do ser humano. Esse exercício do autoconhecimento também realizado pelos orientais através de meditação ajuda a pessoa a ter mais autocontrole e a dominar suas feridas, alcançando uma estado de mais harmonia, purificando as paixões, ordenando o intelecto. É a busca do entendimento. Talvez do entendimento de tudo que é vivido.
Em relação ao esquecimento, ele sempre vai existir, ele faz parte da memória, quando não lembramos algo, não significa que essas lembranças não existem mais, é que estão menos iluminadas na mente. Existem lembranças que são reforçadas ou não, estão latentes. E podemos rastrear nossas imagens e palavras. Aquilo que se torna significativo é aquilo que se busca constantemente no seu interior e vai estar sempre iluminado, distante do esquecimento.
As impressões de um passado se tornam presente à medida que as temos no presente com a memória, ou seja, um presente das coisas passadas é um presente das coisas no presente e também um presente das coisas no futuro. O tempo está na mente humana, ele é subjetivo. Falar no presente é recordar.