por Monica Aiub
Há quem aponte como característica do mundo contemporâneo a fragmentação: “ Somos seres fragmentados em um mundo fragmentado”. Em pedaços espalhados pela vida, tentamos, em vão, encontrar algo que una, ligue, compacte.
Recebo, no consultório, pessoas que sofrem com a sensação de fragmentação, que lutam para encontrar “sua identidade”, “seu ser”. Mas recebo também, no mesmo consultório, pessoas que encontram no fragmentar-se um modo de vida, uma forma de ser, que encontram uma identidade fragmentada ou, simplesmente, são estes muitos fragmentos espalhados pela vida.
Um motivo de fragmentação, por vezes, encontra-se nas escolhas que a pessoa faz no decorrer de sua vida. Escolheu um caminho e o percorreu e, de repente, surge a possibilidade de, ao invés deste caminho, ter percorrido outro, completamente diferente. Imagine-se hoje, reencontrando seu passado, com a possibilidade de voltar “o filme da vida” e reinventá-lo, em moldes completamente diferentes.
Se ao invés de ter se dirigido a sua área de trabalho atual tivesse feito a escolha que deixou para trás, se ao invés de ter viajado tivesse se casado com aquela pessoa que você nunca mais viu, etc. Onde você estaria hoje? Mas estas ideias são apenas uma ficção. Não há como saber se teria sido melhor, se teria dado certo. Assim como, no momento de nossas escolhas, não há como saber se elas nos levarão ao lugar existencial para o qual desejamos nos dirigir.
Além disso, as paisagens que construímos no momento em que definimos nossas escolhas nem sempre possuem condições de satisfação, ou seja, muitas vezes pintamos um quadro muito melhor ou muito pior. Temos como saber se as possibilidades que imaginamos se concretizarão? Há situações em que possuímos elementos que nos permitem avaliar com mais clareza a existência das possibilidades, os passos necessários para concretizá-las, mesmo assim não há garantias de efetivação de tais possibilidades.
"Não era tudo isso"
Contudo, há situações em que idealizamos as possibilidades e escolhemos caminhos acreditando nelas, apesar de não possuirmos condições para satisfazê-las. Então, nos dirigimos para certas escolhas e, uma vez realizadas, ficamos insatisfeitos com elas, como se desejássemos muito ir a um lugar que imaginamos ser fantástico, maravilhoso, e ao chegarmos lá constatássemos que “não era tudo isso”.
O que fazer quando, diante de nossa própria vida, constatamos que o lugar existencial que construímos para nós “não era tudo isso”, “não é o que desejaríamos que fosse, “não atende a nossas necessidades existenciais”?
Para alguns tal constatação leva à descrença absoluta: “nada é o que parece ser”, “não há saída”, “qualquer sonho, qualquer busca, tudo isso é ilusão”… Alguns significam esta constatação como a inexistência de caminhos, enquanto outros a significam como a possibilidade de rever a vida e encontrar novos caminhos, a possibilidade de re-inventar-se.
Encontro pessoas extremamente insatisfeitas com suas vidas, acreditando que não é possível viver de outra forma. O mundo lhes parece cruel, difícil, triste, indigno. O outro lhes parece corrupto, injusto, predador. As condições lhe parecem inóspitas. Somos, a seus olhares, sobreviventes de um mundo em guerra, vivendo a miséria da existência.
Mundo pode ser um universo de possibilidades
Encontro também pessoas que estão insatisfeitas com suas vidas, mas acreditam que necessitam sonhar, re-inventar suas formas de vida. O mundo lhes parece um universo de possibilidades. O outro lhes parece ser simplesmente outro, alguém com quem se pode aprender um novo olhar. As condições são apenas condições, nós podemos construir muitas coisas a partir delas. Somos, a seus olhares, seres criativos com um universo imenso de possibilidades diante de nós, vivemos a fortuna da existência.
Entre estes extremos, todos os graus de variação são possíveis. Como o mundo parece para você? E o outro? Como você avalia tudo o que viveu até o momento? Já constatou elementos que gostaria de modificar no mundo a sua volta? Sua leitura do mundo, comparada a de outras pessoas, é mais ou menos correta? De que maneira a leitura que você faz do mundo, as crenças que constitui sobre ele, direcionam seu existir?
Vimos no texto Entenda a estrutura de pensamento – (clique aqui) que a estrutura de pensamento de uma pessoa é plástica, flexível, e há muitas possibilidades de articulação. Obviamente, as questões colocadas no parágrafo anterior podem ser respondidas de maneiras muito diferentes, dependendo das circunstâncias, do momento, de quem é este outro com o qual nos relacionamos, e de muitos outros fatores. Além disso, pessoas em circunstâncias similares podem ver o mundo de maneiras diferentes, podem reagir de formas distintas. Há os que diante de adversidades fogem, escondem-se; há os que enfrentam; há os que buscam alternativas, e há aqueles que optam por estas e muitas outras formas de lidar com as questões.
Cada ser é único
Retorno aqui ao discurso da singularidade, ao mesmo tempo em que insisto em destacar que somos seres singulares situados no mundo, ou seja, as condições de satisfação de nossas crenças sobre o mundo possuem um papel fundamental na constituição daquilo que somos, mas não são, necessariamente, determinantes.
Ao estudarmos a estrutura de pensamento de uma pessoa, a forma como ela vê o mundo é apenas um tópico: Como o mundo parece. Este primeiro tópico diz respeito a “como parece” e não necessariamente “como é”. Afinal, existe a possibilidade de conhecermos o mundo “tal qual ele é”? O mundo é suficientemente estático para dizermos que ele é de determinada maneira e orientarmos nossas vidas a partir disto? Ou há possibilidades do mundo vir a ser de outras maneiras, dependendo do que fizermos dele? Podemos construir o mundo à nossa maneira? Quais as consequências de cada uma destas crenças sobre o mundo em nossas vidas?
O primeiro ponto que desejo ressaltar aqui é que não trabalhamos, em filosofia clínica, com questões isoladas, nem fazemos a leitura dos tópicos isoladamente. O passo inicial de um filósofo clínico é fazer os Exames Categoriais. Em outras palavras, quando constatamos o funcionamento de cada tópico – e utilizemos aqui o primeiro deles como exemplo: Como o mundo parece, consideramos este tópico a partir das categorias: assunto, circunstância, lugar, tempo e relação. Consideramos também as relações inter e intratópicas (os 30 tópicos da estrutura de pensamento), assim como as formas que a pessoa faz uso para lidar com suas questões (submodos).
Com isso, destaco que não se trata de uma leitura fragmentada do ser humano, mas também não descartamos a possibilidade de encontrarmos tópicos soltos, fragmentos significativos que, por si, sejam capazes de movimentar uma vida.
Não é o caso de traçarmos como objetivo clínico a fragmentação ou seu oposto, não defendemos a necessidade de sermos unos ou múltiplos, simplesmente buscamos a compreensão dos diferentes e legítimos modos de ser, e constatamos que, às vezes, fragmentar-se é uma destas formas. Estar fragmentado pode se constituir num problema, ou ser a solução encontrada para viver as possibilidades de ser.