Podemos ser realmente livres?

Uma das características mais marcantes da nossa época é a redução do significado à dimensão de uma vida. Tudo o que é relevante ou deixa de ser tem de sê-lo da perspectiva de um indivíduo. Logo, tudo o que é importante tem de se limitar ao período de uma vida humana, que é tudo de que o indivíduo dispõe. Nada que ultrapasse essa dimensão parece fazer muito sentido.

Isso está ligado certamente à valorização intensa da subjetividade, dos problemas e soluções que cada um de nós pode, por si mesmo, levar adiante. Um certo filósofo afirmou que os homens de sua época, no final do Século XIX, não plantavam mais árvores para as gerações futuras. Isto é, não se dedicavam a coisas que só poderiam dar frutos fora da dimensão de sua própria existência.

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Se compararmos essa situação a outras, anteriores, veremos que ocorreu uma espécie de fragmentação de qualquer coisa que se pareça com um sentido geral da espécie humana. Se há um sentido, ele tem de poder ser vivido por cada um de nós, dentro de nossas existências particulares.

Entretanto, parece que isso não é (mais) totalmente verdadeiro. Não porque estamos recuperando um sentido geral, uma dimensão maior de significado que pudesse transcender a esfera privada e permitir uma nova articulação com outras dimensões que não a do próprio ego. Trata-se justamente do contrário: de uma marcha da fragmentação do sentido ainda mais intensa.

Por que não somos donos do nosso nariz

Com isso quero dizer que nem mesmo o sentido privado parece possuir consistência na medida em que o ego é constrangido por todos os lados. Se é verdade que cada um é o responsável exclusivo por si mesmo, também temos de reconhecer que já não somos capazes de reger nossa própria vida de acordo com nossos próprios interesses e valores. Na mesma proporção em que somos responsabilizados por todos os aspectos da nossa vida – como se tudo nela dependesse exclusivamente de nós – somos automaticamente constrangidos a prestar contas a uma multidão de pequenas autoridades diárias.

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A aparência de liberdade é muito intensa nesse ambiente. Afinal, quem é o responsável pelas decisões que tomamos? Apenas nós mesmos. Entretanto, ao lado desse processo de responsabilização crescente ocorre uma debilitação de nossa competência para decidir – algo que em geral passa despercebido ou é muito sutil.

Ato de fumar + racionalização da vida + liberdade  

Um exemplo desses constrangimentos cotidianos é o do ato de fumar. Em um mundo livre, cada um pode escolher se isso lhe agrada ou não, se há uma dose de prazer envolvido nesse ato ou não, se ele responde a alguma demanda psicológica individual ou não, se ele se faz acompanhar de uma boa conversa ou não, se ele é um gesto suicida ou não – ou qualquer outro motivo. Porém, no mundo real nossa liberdade de avaliar segundo nossos próprios interesses pessoais e imediatos é imediatamente submetida ao controle da racionalização da vida.

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Então, se é verdade que, por um lado, cada um pode escolher se fuma ou não, por outro isso é algo visto como absolutamente inconveniente e irresponsável. O problema é que em função das evidências científicas o fumo prejudica a saúde e onera a sociedade com gastos financeiros implicados nos cuidados aos doentes. Você pode decidir-se a fumar, mas não deve fazê-lo em função dos prejuízos sociais que isso provoca. Você está autorizado a fumar, mas isso é uma atitude egoísta e irracional de uma perspectiva estritamente racional. O exercício de sua liberdade conduz a algo moralmente condenado e destituído de lógica. Não se trata de que os outros julgam que é inconveniente fumar. Se trata de que isso é condenável de um ponto de vista científico. Logo, de um ponto de vista culturalmente revestido de autoridade.

Liberdade individual x razão

Traduzindo a situação, penso que hoje a liberdade individual está em confronto com a razão. Tudo o que se afirma contra o ato de fumar – a essa altura já transformado pela ciência na patologia tabagismo – são argumentos muito razoáveis. De um lado do mundo em que vivemos, temos a promessa de uma libertação geral de todo tipo de constrangimento que não passe pela nossa própria capacidade de avaliar e decidir. De outro, se encontra a autoridade científica que busca conduzir, cada vez mais, os menores detalhes de nossa existência. A racionalização absoluta de nossas vidas não pode ser compatibilizada com a posse de uma liberdade intensa. Então, mais cedo ou mais tarde, teremos que escolher entre a razão e a liberdade.

Não sei quanto a você, mas eu já comecei a fumar!