Sua espiritualidade pode te fragilizar

Exercite sua espiritualidade no aqui-agora, entenda como um ‘padrão elevado de estar no mundo’ pode te afastar de sua verdadeira essência

Um episódio que marcou a minha vida, aconteceu há décadas, mas foi para mim um divisor de águas. Um amigo, que era a minha referência de espiritualidade (vegetariano, praticante de ioga, e estudioso do ocultismo/espiritualismo), mudou o rumo da minha vida. Ele, não falava palavrão, não era visto namorando, nem em festas, não bebia álcool e nem fumava.

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Um dia me confidenciou que ao se aproximar de um açougue ou de um botequim, atravessava a rua, porque não suportava a “vibração”, segundo ele “muito baixa e acabava afetando-o”. Naquele dia, decidi que essa não era a classe de espiritualidade que iria buscar na minha vida. Vivia nesse mundo, num mundo de ferro e fogo, de “vibração baixa e pesada” e eu não iria dar mole para os dragões da maldade permitindo que a minha espiritualidade fragilizasse o meu ser.

Espiritualidade associada a um padrão de pureza

A busca de uma perspectiva mais espiritualizada, muito influenciada pelos cânones orientais, pelo Budismo, Zen, Ioga e outras escolas místicas, acabou gerando um padrão de “pureza” e associando isso à espiritualidade. Paradoxalmente, esse padrão elevado de estar no mundo, atraiu, mas afastou também muita gente. Ao longo desse tempo, muitas pessoas, jovens em geral, me procuravam aflitas com a angustiante pergunta: “Como ser espiritualizado nesse mundo tão materialista, tão duro e de vibração tão baixa?”

Como não fui o primeiro a ser questionado por aspirantes a “iluminados”, contava sempre a mesma fabuleta, que o meu mestre contava, para responder as perguntas que nem chegavam a ser feitas por seus discípulos:

“Numa aldeia bem pobre no interior da Índia, uma cobra enorme estava tocando o terror. Ela atacava as pessoas, comia as crianças, as cabras e mantinha a aldeia prisioneira do medo. Um dia, um grande sábio chegou a aldeia, e todos foram reclamar com ele da “cobra assassina”. Ele ouviu as súplicas, teve compaixão do desespero dos aldeões, e se prontificou a ajudar. Entrou na floresta e começou a meditar. Em breve, a cobra atraída pela sua energia, se aproximou dele e ambos começaram a conversar mentalmente.

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“Estou muito aborrecido com a senhora, dona cobra”, disse enérgico o grande sadhu.

“Mas por que, mestre? O que eu lhe fiz?”

“A mim nada, mas está prejudicando essa pobre gente da aldeia, isso é muito feio. Não quero que continue a fazer isso. Está entendendo?”

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“Sim mestre, me desculpe. Não vou mais atacar a aldeia, nem machucar as pessoas e suas criações.”

O mestre foi embora e voltou dois anos depois. O que ele viu o deixou estarrecido. As crianças estavam fazendo a cobra de corda de pular, os cachorros mordiam sua cabeça, alguns atiravam pedras nela só por diversão. Ela estava um farrapo, toda machucada, magra e desesperada.

O mestre afastou as pessoa e mentalmente falou com ela: “O que aconteceu aqui?” Perguntou ele surpreso.

“Tudo culpa sua”- respondeu ela.

“Minha culpa? ” Surpreendeu-se o poderoso sábio.

“Claro” respondeu a ex-perigosa serpente. “O senhor mandou eu não atacar, não morder, não matar, aí eles perderam o medo de mim, e o resto é o que pôde ver.”

O mestre, olhou bem para os olhos mortiços da grande cobra e disse: “Eu te proibi de atacar, mas não de balançar o chocalho!”

Não precisamos descer ao nível dos brutos, fazer o que os mais materialistas e predadores fazem, mas nada nos impede de balançar nosso chocalho, para dizer: “Se abusar eu mordo!”

Ser espiritualizado é um desafio

Ser espiritualizado em tempos de fortes correntes materialistas, é sem dúvida um desafio, mas se recolher num monastério do Tibete, não é uma solução que possa ser generalizada. Para a maioria, o Tibete é aqui! Precisa ser aqui.

Quando uma pessoa se sente impelida a buscar caminhos mais espirituais, se sente atraída por meditação, esoterismo, feng shui, teosofia, espiritismo, curiosidade sobre artes divinatórias, postura devocional etc; é por que já preexiste uma sementinha trazida de uma vida anterior. De alguma forma o que foi tocado na existência anterior volta a se manifestar agora. Isso pode se revestir de muitos significados e formas de manifestação. Mas em geral, esse impulso para o mais elevado, cria um desconforto/descompasso com o mundo de carne e osso, ferro e brasa.

Algumas pessoas me dizem: “Como posso meditar, mergulhar no silêncio da mente profunda no caos ensurdecedor de São Paulo? Como posso ter um desapego crístico, num mundo onde tudo tem seu preço, e cada um só vale o quanto produz? Sou um desajustado nesse mundo cruel.”

Essas são questões temáticas, criadas por uma determinada concepção de espiritualidade, mais oriental ou mais religiosa.

Uma das condições básicas para que a gente possa desenvolver a nossa espiritualidade é encarar o real, o que existe, não “viajar na maionese”, nunca esperar o mundo ideal.

Quando eu era muito jovem, entrei numa instituição espiritualista acreditando que ali estaria entre seres superiores, numa ilha de paz e elevação espiritual, onde poderia, pelo menos por algumas horas por semana, me sentir em casa. Em pouco tempo, fui envolvido por uma luta encarniçada pelo poder, disputas de ego, conchavos para ocupar cargos de chefia etc.

Saí dali revoltado, descrente, criticando a instituição e as pessoas. Só muitos anos mais tarde, quando me tornei profissional, e passei a usar muito do conhecimento adquirido lá, é que entendi a mensagem: Existem vários níveis de entendimento e percepção! Aquele jovem que esperava encontrar comportamentos de monges orientais, de sanyasins desapegados, se frustrou, porque a sua própria expectativa era irreal. Mas o conhecimento, que parecia não estar servindo para os líderes, serviu para mim (e acredito para muitos outros).

Buscar o refúgio entre altas montanhas remotas, ou entre pessoas de cabeça raspada e gestos lentos e solenes, pode ser uma saída para alguns, mas certamente não é para a imensa maioria. Quando alargamos nossos horizontes, e o nosso olhar se adapta, vamos ver que já estamos num imenso templo, cercados de mestres e discípulos que muitas vezes nem sabem que o são. Os exercícios que precisamos fazer para evoluir, devemos fazê-los todos os dias, no transporte público, no nosso trabalho, na faculdade e na maior arena de todas: nossa família!

Orar, meditar, estudar as antigas escrituras, cantar mantras, cultivar o silêncio misericordioso, ou fazer votos de pobreza e castidade, não são o caminho mais seguro para dar passos acima da escada da evolução.

No barulhento mundo à nossa volta, vamos encontrar (se tivermos olhos para ver e ouvidos para ouvir) as oportunidades para nos colocarmos à prova – muitas, tantas que poderemos até nos perder diante de sua “fartura”.

Espiritualidade: antirrigidez, flexibilidade, o cinza caminho do meio, nem branco, nem preto

Esse é o grande segredo, esse é o desafio supremo: estar no mundo sem ser tragado pelo mundo! Usar as oportunidades, os cacos de vidro, as lâminas afiadas, a corrosão dos ácidos, a dureza das palavras, a aspereza dos sentimentos, tudo junto e cacofônico, para testar nosso propósito.

Vestir um hábito laranja, raspar a cabeça e se refugiar num mosteiro, é fácil, por mais difícil que seja, quero ver, é ter compaixão e olhar fraterno, vestindo terno e trabalhando no trigésimo andar do centro nervoso de uma megalópole.

Temos de entender essa realidade para poder apoiar os espíritos desafiadores que começam a chegar junto com o século XXI.

Não adianta fugir, escapismo é retrocesso. Nosso tempo/templo é aqui/agora, do jeito que dá.

R.I.P 09/01/2018 Foi um escritor e autor dos seguintes livros: "Feng Shui para Brasileiros - A Medicina da Habitação", "Feng Shui - Energia e Prosperidade no Trabalho", "Feng Shui Para Brasileiros - A Cozinha" - todos pela Editora Campus. "Não Te Devo Nada" e "Solidão Nunca Mais" ambos pela Bertrand Brasil. A parceria mais longa de sua vida foi com o Vya Estelar (18 anos), onde chegou a ser decano.