por Monica Aiub
Um leitor pergunta: Por que é necessário que exista filosofia clínica? Poderíamos responder de várias maneiras: para que possamos exercitar a reflexão sobre as questões cotidianas, para não perdermos a crítica, para refletirmos sobre nossas formas de sentir, pensar e ser no mundo, e muitos outros “para quês”.
Mas a pergunta não é sobre a finalidade, e sim sobre os motivos, as causas de sua existência. Poderíamos contar a recente história da filosofia clínica, e o leitor concluiria quais seriam os motivos, mas opto por abordar a questão a partir do que compreendo como causa.
Quando Lúcio Packter (filósofo brasileiro, contemporâneo) propõe a filosofia clínica como uma abordagem filosófica aos problemas existenciais, sua preocupação está voltada para a obtenção de instrumentos para auxiliar as pessoas a lidar com o sofrimento. Ele constata que muitas de nossas limitações (mortes, doenças, perdas) são fatos, tratados pelas diferentes ciências, e em especial pela medicina, com os instrumentos que essas possuem para lidar com tais problemas. Contudo, esses instrumentos não são suficientes para atender às demandas existenciais, a questionamentos que se constituem como problemas filosóficos: Por quê? Como? O quê? Para quê? Diante de certas limitações causadas por doenças, por morte de nossos queridos, não encontramos respostas que nos aquietem, que nos conformem.
A filosofia, por sua vez, não possui o papel de aquietar, de acomodar, de conformar, de conter. Ao contrário, seu papel é inquietar, incomodar, inconformar e, com isso, gerar movimentos. Mas seus movimentos são pesquisados, compostos com elementos coletados e analisados com rigor, com método. Suas possibilidades consideram os contextos e as muitas implicações de nossos posicionamentos diante de tais contextos – tanto para nós, quanto para tudo o que está envolvido nesse movimentar.
Não se filosofa sozinho, apesar da filosofia ser uma atividade solitária, no sentido de exigir o “pensar por si mesmo”. Precisamos do outro que nos instigue, que nos provoque, que nos aponte as falhas, as imprecisões de nosso pensar; que amplie nosso olhar para o mundo, apresentando novas perspectivas; que partilhe conosco a existência.
Daí a figura do amigo, daquele que ama, que busca e deseja o saber. Amigo do saber, do conceito, ou amigo do outro? – perguntam Deleuze e Guattari em O que é a filosofia?, mostrando que o filósofo pode tornar-se amigo do conceito e rival do outro, se não houver abertura para o diálogo, para a diferença.
A filosofia clínica se constitui como o espaço para o pensar-junto-com-o-outro, para o encontro com o amigo, que além de amigo do saber, ou seja, de buscar constantemente o saber, de investigar os motivos para aceitar as ideias, também é aquele que se coloca como amigo do outro. Seu exercício de amizade supõe a escuta atenta, o espanto, a admiração e, na medida de suas possibilidades, a suspensão dos juízos para ver o outro a partir do outro, para compreender o modo de ser e as necessidades daquele que precisa de auxílio. Você tem um amigo assim? Você é um amigo assim?
Voltando à questão, penso que a filosofia clínica existe, hoje, porque não encontramos, em nosso cotidiano, espaço para o diálogo franco; amigos disponíveis para escutar, compreender e aceitar nossa forma de ser; porque não temos tempo, não silenciamos, não nos permitimos ser o que somos diante do outro. Nossos pensamentos são contidos, nossos desejos aplacados, nossas intensidades controladas, nosso equilíbrio natural substituído pela artificialidade de modelos prontos, aos quais necessitamos corresponder para que sejamos aceitos, para que tenhamos a falsa ilusão da amizade daqueles que apenas pertencem a um mesmo padrão, ou que recebem um mesmo rótulo.
Ainda pulsa em nós a necessidade de sermos o que somos, de nos dedicarmos àquilo que amamos, de nos sentirmos vivos e partilharmos com o outro a vitalidade de ser, a criatividade do existir, a leveza dos movimentos da vida, a delicadeza de um olhar atento e a profundidade de um abraço amigo. Para muitos que procuram uma terapia, isso basta. Para muitos que vivem tristes, e em alguns casos até deprimidos, apenas a partilha seria suficiente para movimentar a existência, para revolucionar a vida. Mas temos isso? Propiciamos isso ao outro? Quando? Em quais contextos? Penso, sinceramente, que a filosofia clínica seria desnecessária se cultivássemos, em nosso cotidiano, a amizade, a escuta, o diálogo.
Aristóteles, na Ética a Nicômacos, afirmou que “com amigos as pessoas são mais capazes de pensar e de agir”, pois os amigos “vão juntos”. Esse é o papel do filósofo clínico, o amigo que “vai junto”, que “pensa junto”, e por isso auxilia a pessoa a ampliar sua capacidade de pensar, de agir, de se colocar no mundo. Por isso dediquei o livro recém-lançado Como ler a filosofia clínica àqueles que, além de amigos do saber são, simultaneamente, amigos do outro. E você, como se posiciona diante de seus amigos? Você tem amigos? E eles, como se colocam diante de você?
Referências Bibliográficas:
AIUB, M. Como ler a filosofia clínica. São Paulo: Paulus, 2010.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Brasília: UNB, 1985.
DELEUZE, G. ; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed.34, 2000.