por Aurea Afonso Caetano
O americano Joseph Campbell (1904-1987) foi um dos maiores estudiosos de mitologia e religião comparada. Muito cedo percebeu que histórias, de maneira geral, seguiam um mesmo padrão, que ele nomeou como “jornada do herói” ou monomito. Consta que durante a produção de “Star Wars” George Lucas redescobriu os livros de Campbell e, a partir dessa releitura, conseguiu articular o movimento que faltava a sua saga.
Campbell, em seu livro “O herói de mil faces” diz que “a função primária da mitologia e dos ritos sempre foi a de fornecer os símbolos que levam o espírito humano a avançar, opondo-se àquelas outras fantasias humanas constantes que tendem a levá-lo para trás”.” (pg. 21) Ainda segundo este autor, o herói dos contos de fadas obtém um triunfo microcósmico, doméstico e o herói do mito obtém um triunfo macrocósmico, histórico-universal.
Somos fascinados por histórias, elas são moeda de troca entre nós. Ao nascer, somos já “adicionados” a histórias correntes. Cada família conta seu conto, cada bebê participa já, desde a concepção, de uma trama, maior ou menor no tempo, com mais ou menos detalhes, mais ou menos participantes mas há sempre uma trama, uma história. Cada um de nós tem um papel atribuído a partir do nascimento ou concepção: o primeiro filho, aquele que veio com muita dificuldade, o que veio de forma fácil, o que trouxe a alegria e bem aventurança à família, o que veio substituir o ausente; o muito desejado, o não desejado. Este lugar na “constelação familiar” antecede a pessoa que chega, ele é dado, a priori, e determina, para o bem e/ou para o mal, o lugar no mundo que ela ocupa.
A pessoa vai crescendo e desenvolvendo-se num contexto de relação entre sua história pessoal e as histórias partilhadas. Muito do trabalho em psicoterapia tem a ver com a discriminação de qual é a história pessoal e qual a familiar ou coletiva, como aquele sujeito individual e único foi moldado pelo ambiente, qual o verdadeiro fio da vida desse ser e qual a trama compartilhada. Somos, na verdade, frutos da relação do individual com o coletivo, não há um fio único, o que há são complexas urdiduras na qual cada um tem seu lugar indispensável. Daí a grande dificuldade de fazer esta discriminação: quem sou eu de verdade? Qual minha história pessoal, qual o mito que vivo?
Pensar na “jornada do herói” ajuda bastante neste momento. Estamos sempre, como dizia Campbell, tentando caminhar e discriminar. Herói é aquele ser humano comum que a cada dia trilha um caminho de diferenciação a partir do coletivo, aquele que é chamado, que temeroso recusa a jornada, que tem auxílio do “estrangeiro” ou sobrenatural, que passa pela escuridão para ressurgir depois transformado, apenas para a seguir, reiniciar todo o processo novamente. E, como dizia Confúcio, “não há nada comum em lugar comum.”
Heroica é toda a jornada através da qual o sujeito surge transformado; cada um de nós à sua maneira, a seu tempo. Jung dizia que o ego é heroico no sentido de ter de se diferenciar do inconsciente, fazer com ele um contraponto. Não no sentido de uma polarização rígida, mas de discriminação e fortalecimento; o ego precisa ser suficientemente forte para poder mergulhar novamente nas águas noturnas, fazer a travessia e surgir outra vez renascido.