Hoje, temos mais tolerância? Afinal eu sou o outro do outro

Nunca falamos tanto de tolerância como nos nossos dias. Nunca dedicamos tanta atenção às necessidades do outro ou das outras pessoas.

Nunca tentamos, com tanto afinco, compreender a lógica da vida dos demais antes de emitir julgamentos. Isso significa que estamos nos tornando pessoas melhores e que o mundo do futuro será melhor, na mesma proporção em que nos tornamos mais tolerantes?

Pode parecer que o desenvolvimento da empatia em relação aos humanos prometa uma situação geral muito superior à atual. Afinal, ser mais tolerante com nossas respectivas diferenças parece anunciar um mundo mais igualitário, mais equilibrado. Um em que a expansão da individualidade não se choque com barreiras desnecessárias, com preconceitos, com julgamentos centrados em nossos próprios egos. Será que estamos nos tornando pessoas melhores? Infelizmente, não sou tão otimista.

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Expansão da tolerância e respeito ao outro

A expansão da tolerância e o respeito pelos outros não ocorre de maneira isolada. Afinal eu sou o outro do outro. Quer dizer que para outra pessoa eu sou um outro para o qual ela também deve a mesma tolerância que solicita. Então, quando reivindico respeito pela individualidade do outro, também pretendo obter respeito pela minha própria individualidade. O ambiente social se caracteriza por relações de reciprocidade. Eu me defino pela definição dos demais. E esses se definem pela minha própria definição. Trata-se de um processo em curso em que cada uma das partes se espelha nas demais.           

Então quando me empenho em um mundo mais tolerante, isso não implica apenas descentramento com relação a mim mesmo, mas também reivindicação por mais espaço para mim mesmo. Digo também porque os demais estão envolvidos nessa relação e se há mais tolerância com relação a minhas peculiaridades, isso vale igualmente para eles. O que eu ganho ou perco também é o que o outro ganha ou perde. Se a questão é a ampliação da empatia, também é verdade que quero ser melhor compreendido pelos demais.

O indivíduo quer mais espaço além daquele que ele já possui

Então o que está ocorrendo não é apenas que o mundo está se tornando mais tolerante. O que efetivamente se passa é que o indivíduo quer mais espaço, além daquele que ele já possui. A reivindicação por tolerância significa que cada um sente a necessidade de ter suas diferenças reconhecidas como válidas, sem passar por crivos exteriores como a moralidade, as convenções, o lugar comum – o estabelecido.

 Mas se é assim, então o outro se transforma, mais e mais, em um problema para mim. Afinal, o outro também requer maior espaço de reconhecimento. Ele também quer que suas diferenças sejam chanceladas como legítimas pelo ambiente social. Ele também reivindica um espaço em que sua maneira de ser possa se expandir sem se chocar contra barreiras exteriores.

Vista de cima, em uma perspectiva global, a luta pelo aumento da tolerância é a reivindicação de maior espaço para cada um. Ela é a expressão da necessidade de uma dimensão existencial maior por parte de cada indivíduo. O pleno florescimento das individualidades requer a diminuição do controle sobre algumas das dimensões da nossa vida – aquelas que não agridem diretamente os demais. Com isso quero dizer que essa expansão deve ocorrer dentro de limites que não violem a integridade física dos demais, por exemplo. Afinal, a sociedade ainda precisa se manter em funcionamento e a violência não pode ser exercida contra os outros sob a capa de ser uma maneira de expressão individual válida. Enfim, há limites dentro de qualquer tipo de ordenamento social. Por aí há limites que serão tão claros como a eficiência policial de cada sociedade.

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Mas até aonde pode ir nossa tolerância?

Ou, em outras palavras, até quando pode uma individualidade se expandir sem se chocar com as demais? Até onde nossas diferenças cabem em um mesmo tipo de arranjo?

Tudo indica que as dificuldades de convivência aumentarão na mesma medida em que as individualidades ganham terreno. Então, cada dia mais, o outro se torna um problema maior, um ser que reivindica um espaço que não é infinito e que, por isso, pode ser o mesmo pretendido por mim. A vida não pode se diferenciar indefinidamente sem que choques aconteçam com outras formas de vida. Se cada dia mais nos diferenciamos uns dos outros, qual será o limite desse processo? Parece que a tolerância expressa, sob uma capa de progresso moral, a sutil presença de um monstro chamado O Outro.

Ronie Alexsandro Teles da Silveira é professor de filosofia e trabalha na Universidade Federal do Sul da Bahia. Mais informações: https://roniefilosofia.wixsite.com/ronie

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