por Roberto Goldkorn
Algumas notícias e reportagens aparentemente sem conexão chamaram a minha atenção recentemente.
A primeira foi a da dona de casa linchada até a morte por pessoas comuns que indignadas a confundiram com uma sequestradora de crianças para fins de magia negra.
Outra foi a do "sequestro" de um ônibus no Rio por um perigoso meliante usando uma tesoura sem ponta. Por fim uma matéria no jornal O Globo falava sobre a civilização da internet "profunda" onde um pequeno exército estimado em oitenta mil "pessoas" se dedica exclusivamente a criar malwares, quebrar sigilos, criar vírus e roubar senhas para criar o caos, e ainda ganhar dinheiro com isso.
Vejo uma diferença imensa entre os malfeitores do caso do linchamento, o rapaz (que já se sabe teve um surto psicótico) e esse pessoal que vive e respira apenas para causar estragos, destruição e lucrar ou não com isso.
O mal acidental, causado por uma circunstância, obviamente ainda assim é mal, causa dor, desequilibra, deve ser punido e receber nosso repúdio.
Mas o Mal que nasce, vive, se alimenta e objetiva sistematicamente a destruição e a corrupção dos valores – esse é nosso Inimigo eterno. Digo nosso porque ao contrário desse povo das profundezas, que se esconde sob camadas de máscaras todas demoníacas, nós somos os seres da superfície.
Hoje minha filha saiu de casa cedo para atender seus pacientes no hospital, meu filho brincou com meu neto, tomou uma vitamina e foi para a sua editora produzir livros. Você que está lendo isso agora talvez esteja no seu intervalo de almoço e planejando ir ao cinema à noite ou até participar de uma palestra sobre meio ambiente. Somos em imensa maioria seres da superfície, temos vidas frugais, que até dariam um filme legal nas mãos de um diretor talentoso. Somos apenas nuvens claras que passam daqui para lá, chovendo um tantinho aqui outro acolá, mas não passamos disso. Nossa existência é dedicada a existir. Se pudermos, faremos algumas coisa boa pela humanidade, ou faremos alguma coisa ruim, que talvez a gente nunca mais repita. E superado esse episódio voltaremos a ir daqui para lá como carneirinhos de algodão branco no céu azul.
Mas o Diabo existe, sempre existiu, ele é o Mal, permanente, não de meio período, mas em tempo integral.
O Diabo não é como diz a mitologia cristã o Inimigo de Deus, nem foi criado independente, nem mesmo habita um local geograficamente conhecido. O diabo é uma criação humana, criado pelo Medo, pela insegurança, pela vaidade humana, e pelo mix dos piores sentimentos – acabou ganhando vida.
Ele vive nos subterrâneos, na internet profunda, onde se negociam vírus capazes de derrubar sistemas que abrigam milhões de usuários, até movimentar o mercado de escravas sexuais. Como se pode ver, o diabo se atualiza, o diabo domina o universo cibernético como ninguém, e destila seu enxofre tecnológico e ao mesmo tempo ancestral do fundo dos abismos de onde opera.
Nós, seres da superfície, vamos insistindo em viver nossas vidas solares, algumas vezes nubladas, sem querer nem mesmo olhar para as profundezas desses abismos – não é a nossa praia. Mas precisamos em algum momento renunciar ao cômodo espaço solar em que transitamos para combater esses demônios, pela simples razão que eles vivem única e exclusivamente para nos infernizar.
O rapaz que sequestrou o coletivo no Rio, ou os "pacatos" cidadãos que lincharam a mulher no Guarujá, poderão um dia voltar de sua descida aos infernos e retomar suas vidas na superfície (ou não). Os nascidos para o abismo porém nunca sairão de lá, são bichos do escuro, lá vicejam e se robustecem enquanto sugam o sangue do sistema do qual não fazem parte (ou fazem), ou seja, o nosso sangue.
Precisamos olhar nem que seja de vez em quando para esses submundos. Mais que isso precisamos ter ciência de sua existência por mais incômodo que isso nos pareça. E finalmente, embora as esperanças de aniquilar os diabos seja vã, é importante que nós, os da superfície aprendamos a combatê-los, ou no mínimo a nos defender deles, dificultando seu crescimento.
Claro que existem mais de cinquenta tons de cinza entre o céu e a terra, mas poucas vezes no curso da história da humanidade, os times do abismo e da superfície estiveram tão bem delimitados. O mundo abismal não existira se não houvessem intermediários que os conectassem com o plano da superfície.
Somos imensas manadas de superficiais, gente comum, cuja máxima ambição muitas vezes é comprar a casa própria ou chegar ao fim de semana para poder ira praia ou fazer um churrasco na laje. Mas a natureza cria grandes manadas e os pequenos bandos de predadores.
Precisamos aprender a afiar os cascos se quisermos continuar a beber água no rio e a ver nossas crias crescerem. Caso contrário, façamos uma reza forte que nos proteja de sermos os escolhidos pelos predadores, e agradeçamos pela proteção