por Monica Aiub
“Por outro lado, os padrões observados culturalmente mostram uma tendência a negar toda e qualquer forma de tristeza, tentando eliminá-la a qualquer preço. Drogas – lícitas e ilícitas, processos de esquecimento e alienação, atividades constantes, entre outras formas, denotam a preocupação em manter a felicidade geral”
O leitor pergunta: “O que é a felicidade para a filosofia?”. No artigo “O que é ser feliz” (clique aqui e leia) abordei a questão por uma perspectiva.
Tentarei abordá-la, aqui, diferentemente. É uma questão difícil, pois apesar de encontrarmos muitos filósofos que trataram e tratam da felicidade, nenhum deles a determina como uma coisa única, nem estabelece formas para nos tornarmos felizes. E isso é próprio da filosofia. Talvez a frase de Erasmo de Rotterdam, no Elogio da Loucura, que cito no artigo sobre o que é ser feliz – “A felicidade consiste em ser o que se é”, esboce um caminho para a questão.
Quando alguém afirma sentir-se feliz, o que isso significa? Como saber? Como é para você, leitor, sentir-se feliz? É o mesmo para as pessoas com as quais convive? Há como mensurar formas, intensidades de felicidade ou apenas nomeamos alguns de nossos estados subjetivos?
A felicidade, assim como nossas emoções, sentimentos, pensamentos, crenças, desejos, sonhos, etc. são estados mentais e estes só nos são acessíveis a partir de uma linguagem em primeira pessoa, ou seja, uma descrição sobre o que sentimos. Não há como ter acesso aos sentimentos de outros senão através de suas descrições e o mesmo ocorre conosco: os outros não têm acesso ao nosso sentir, exceto se o descrevermos. Ainda assim, quando descrevemos o que sentimos, o outro interpreta a partir de seus próprios referenciais, o que o impede de ter uma concepção exata de nosso sentir.
O que significa, então, para uma pessoa, ser feliz? Será que todas as vezes que você afirmou estar feliz, sua afirmação se referia exatamente a um mesmo estado? Ou haveria diferentes estados de felicidade? É comum cobrarmos de nós mesmos e dos outros um padrão de felicidade. Todos devemos nos sentir felizes com nossas vidas, com nossos afazeres cotidianos, com nosso trabalho, com nossas relações… Partindo de nosso próprio existir, de nosso cotidiano, o leitor considera possível ser feliz o tempo inteiro? Observo, no consultório de filosofia clínica, a perplexidade de algumas pessoas com o fato de não se sentirem felizes em contextos onde “deveriam” sentir felicidade. Ou ainda, mais perplexas por nunca terem sentido isso que dizem ser “felicidade”.
Poderíamos falar que “devemos” ser felizes? O que isto significa? Em geral, nas falas que aqui cito, significa corresponder a um padrão do que é considerado, socialmente, felicidade. Estar sempre sorrindo, animado, motivado, com vontade de se relacionar, de ir a lugares, de se divertir… Se ampliarmos o espectro de observação dos contextos sociais, poderemos verificar que os padrões poderão variar de acordo com uma série de fatores. Mas isto, na maioria das vezes, sequer é considerado. Além disso, as formas como as pessoas se constituem, como são, como lidam com suas questões, são diferentes; assim, o que me faz feliz pode não fazer o outro feliz. O que me traz felicidade poderá trazer aborrecimento ou tédio a outras pessoas. Quero dizer, com tais questionamentos, que esquecemos de observar a singularidade de nossas formas de vida quando buscamos, ou cobramos de nós mesmos, corresponder a padrões genéricos.
Por outro lado, os padrões observados culturalmente mostram uma tendência a negar toda e qualquer forma de tristeza, tentando eliminá-la a qualquer preço. Drogas – lícitas e ilícitas, processos de esquecimento e alienação, atividades constantes, entre outras formas, denotam a preocupação em manter a felicidade geral. Se consideramos, em tempos anteriores, a tristeza como algo natural, como parte de um processo necessário às movimentações do ser humano em suas interações com o mundo, a tendência atual é não apenas buscar, mas exigir uma felicidade constante, ainda que adquirida artificialmente. Dessa perspectiva é possível observar uma modificação no modo de lidar com a felicidade e a tristeza, antes consideradas complementares, naturais e necessárias ao desenvolvimento humano, são hoje opostas: a felicidade sempre necessária, e a tristeza confundida com uma patologia que precisa ser extirpada, curada.
Allan Horwitz e Jerome Wakefield, no livro A tristeza perdida, mostram como a tristeza é confundida com a depressão, inclusive por médicos, que optam por medicar casos de tristeza. Será que a tristeza advinda de nossas insatisfações com a vida, de nossa reação às perdas, ao mal-estar deve ser simplesmente extirpada? Curada? Ou seria ela um indicativo da necessidade de encontrarmos formas para superarmos o que se colocou para nós como limitação, como incômodo?
O número de pessoas que tomam antidepressivos aumenta cotidianamente, o uso de drogas, feito por pessoas que buscam manter um estado de “felicidade” constante, também. O mundo não é perfeito, nós também não somos. A constatação das imperfeições, as insatisfações podem nos mover a transformar nossas vidas, a criar alternativas. Mas se nos contentarmos com isto que não está bom, suprindo nossas necessidades de bem-estar e prazer artificialmente, sem encararmos o que nos incomoda, simplesmente perpetuaremos as condições nas quais nos encontramos, ou pior, talvez estejamos permitindo que as condições indesejadas se alastrem, enquanto vivemos nossa felicidade artificial. A tristeza é, muitas vezes, inevitável ao movimento, à transformação.
Contudo, basta estarmos um pouco tristes para alguém já querer nos tirar de nosso estado. Muitos se aborrecem conosco se não abandonamos nossa tristeza em suas primeiras tentativas. No mundo do trabalho, não há lugar para a tristeza, ela deve ser tratada, porque o profissional, seja de que área for, na maioria dos contextos deve estar sempre sorrindo. Ainda que seu trabalho seja inadequado a você, ainda que sua rotina seja extremamente aborrecida, ainda que seu salário não pague as contas do mês, é preciso que você se sinta feliz, perfeito, forte, vencedor. Isto é possível?
Este ser feliz, perfeito, forte não existe, ele é uma ficção, um ser abstrato e inatingível plenamente. Contudo, cobramos diariamente, de nós mesmos e dos outros, uma felicidade abstrata e perene. Temos momentos de felicidade, de bem-estar, de saúde, de vida, etc., mas tristeza, mal-estar, doença, morte também são partes constitutivas de nosso existir. É claro que não se trata de sucumbir a tais estados e eles se tornarem perenes, destruindo nossas possibilidades de existência. Trata-se, sim, de encontrarmos as formas possíveis para lidarmos com tais estados, trata-se de observarmos nossos processos e buscarmos as mudanças necessárias em nossas vidas.
Mas a busca da felicidade artificial nos leva, contrariamente, a um “fazer menos”, “viver menos”, para não colocarmos em risco uma pretensa estabilidade que denominamos felicidade. “Se é difícil estabelecer relações, e é difícil, melhor não se relacionar. Se há insatisfação com a carreira, assim é a vida, melhor não arriscar o certo”. Ao optarmos pelo não movimento a fim de evitarmos a tristeza, fazemos uma opção: já estamos em movimento, perpetuando um estado. Será que nosso movimento garantirá felicidade? Ou nos impedirá de alcançá-la? Temos consciência das possibilidades de realização daquilo que buscamos, das prováveis consequências de nossas escolhas? Sabemos como construir as bases para que nossas buscas possam ser realizadas? Estes são aspectos importantes para avaliarmos, mas também é preciso que tenhamos consciência que as coisas podem dar errado, e que se isto ocorrer, é natural que fiquemos tristes, não há nada errado com isso.
Referências Bibliográficas:
HORWITZ, A.; WAKEFIELD, J. A tristeza perdida: Como a psiquiatria transformou a depressão em moda. São Paulo: Summus, 2010.
ROTTERDAM, E. O elogio da loucura. São Paulo: Abril Cultural, 1973.