O uso de álcool e drogas, lícitas e ilícitas, por médicos, é um sério problema de saúde pública
Cerca de 11 a 14% dos profissionais da saúde abusam de substâncias psicoativas em algum momento das suas vidas. Esta população específica faz uso abusivo de benzodiazepínicos (diazepam, alprazolam, clonazepam, midazolam etc) e de opioides (codeína, fentanyl, meperidina, oxicodona etc) mais frequentemente do que a população geral.
No entanto, álcool, cocaína, maconha, meta-anfetamina e outras drogas também podem fazer parte do repertório, de forma similar ao que ocorre na população geral. Em um estudo longitudinal de 5 anos envolvendo 904 médicos já participando de um programa de tratamento, cerca de 50% abusavam de álcool, 36% de opioides, 8% de estimulantes e 6% de outras substâncias (Referência: McLellan AT, Skipper GS, Campbell M, DuPont RL. (2008). Five year outcomes in a cohort study of physicians treated for substance use disorders in the United States. British Medical Journal. 337:a2038).
Fatores de risco para o uso
História familiar de dependência química, estresse familiar e emocional, insatisfação com a vida pessoal, facilidade de acesso a medicamentos controlados, turnos exagerados de atividades laborais, intensa ansiedade, comportamentos de busca por sensação e outros aspectos da personalidade têm sido apontados como fatores de risco para o abuso de substâncias psicoativas entre médicos e outros profissionais da saúde. Comparadas com médicos, as médicas usuárias costumam ser mais jovens, ter mais amiúde subjacentes problemas relacionados com depressão e ansiedade, tentar mais frequentemente suicídio quando intoxicadas, e apresentar recaídas em um tempo menor após ter atingido um período de sobriedade.
Alguns autores têm enfatizado que, durante o ensino médico, os futuros profissionais deveriam ser melhor orientados sobre os riscos da automedicação, a necessidade de desenvolver atividades outras (esportes, artes, lazer, religião etc), a observância quanto a sintomas de estresse, a consciência sobre a própria fragilidade e vulnerabilidade. Outrossim, médicos não deveriam prescrever medicações para outros médicos que não são seus pacientes; da mesma forma, médicos não deveriam prescrever medicações controladas para si mesmos. Os profissionais da saúde, como qualquer outra pessoa, devem procurar ajuda de outro profissional médico sempre que for necessário, superando qualquer sensação de onipotência.
Tipologia: uma proposta
Na minha prática clínica diária, é possível identificar alguns tipos diferentes de profissionais da saúde usuários problemáticos de substâncias psicoativas que buscam tratamento:
1. Jovens experimentadores: geralmente, estes indivíduos começam o uso de substâncias psicoativas já durante a faculdade e acabam por consumir as drogas e aumentar as doses no decorrer dos anos;
2. Meia idade: profissionais da saúde que apresentam dificuldades para encarar a inexorabilidade do tempo, com problemas conjugais, conflitos quanto ao trabalho e ao futuro;
3. Os autoprescritores por motivo “legitimado”: são aqueles profissionais da saúde que, devido a um quadro de insônia, depressão, dor crônica, acabam por autoprescrever medicamentos controlados e perder o controle diante do uso;
4. Profissionais expostos a substâncias psicoativas por longo período: são aqueles profissionais que trabalham horas a fio em ambientes expostos às substâncias voláteis e que demonstram dificuldade para conciliar o trabalho com o lazer.
Claramente, a classificação acima é proveniente da experiência clínica diuturna. Uma análise de cluster (grupos de pessoas) baseada em avaliações psicométricas motivacionais, por exemplo, deverá ser realizada com o fim de determinar tipos de profissionais da saúde usuários problemáticos de substâncias psicoativas além de uma dúvida razoável. Uma clareza a respeito dos tipos de dependentes poderia nortear um manejo terapêutico mais adequado.
Sinais de suspeição
A suspeição ou mesmo a identificação de médicos e/ou outros profissionais da saúde com problemas com o uso de substâncias psicoativas usualmente é bastante demorada, muito possivelmente devido às tentativas do próprio profissional da saúde usuário de drogas para proteger o seu trabalho e a sua imagem às custas dos prejuízos em outras esferas da sua vida. Alguns autores têm apontado uma sequência de áreas afetadas, sendo a primeira área a família e a última o trabalho per si.
Da mesma forma como deve ocorrer com qualquer outra doença de curso crônico, a detecção precoce, bem como a intervenção terapêutica imediata são cruciais. Abaixo, aloco alguns sinais de alerta que profissionais da saúde usuários de substâncias psicoativas podem apresentar em diferentes arenas da sua vida:
Família:
a) O profissional deixa de participar de encontros familiares, dando desculpas mentirosas;
b) O cônjuge começa a assumir papel de cuidador;
c) Conflitos começam a ser mais frequentes em casa;
d) Abuso e negligência dos filhos tomam lugar;
e) Profissionais passam a demonstrar condutas atípicas ou mesmo aberrantes;
f) Problemas sexuais, tais como, disfunção erétil, traições e promiscuidade podem chamar a atenção;
g) Existirá o arrependimento; porém, não haverá mudança comportamental, se não existir intervenção.
Comunidade:
a) O profissional torna-se progressivamente mais isolado, evitando encontros sociais, com desculpas pouco convincentes;
b) Comportamentos embaraçosos em restaurantes, reuniões sociais, clubes poderão ocorrer;
c) Problemas legais, como dirigir intoxicado, violência intrafamiliar e extrafamiliar, tendem a aparecer;
d) Comportamentos imprevisíveis: tomada de risco, gastos excessivos, irresponsabilidade.
Estado físico:
a) Deterioração da higiene pessoal;
b) Deterioração dos hábitos de vestimentas;
c) Autoprescrição de medicamentos controlados;
d) Acidentes e traumas físicos frequentes;
e) Sintomas de depressão e ansiedade;
f) Pensamentos suicidas;
f) Incapacidade de concentração e foco.
Profissão:
a) Várias mudanças de trabalho nos últimos 5 anos, com justificativas vagas;
b) Mudanças de cidades e/ou estados frequentes;
c) Hospitalizações frequentes;
d) Faltas e atrasos ao trabalho não explicados de forma convincente;
e) Queda do rendimento profissional.
Consultório:
a) Agenda de consultas torna-se desorganizada;
b) Atrasos às consultas tornam-se mais frequentes;
c) Síndrome da “porta trancada”: o profissional se tranca na sua sala com o fim de usar substâncias ou mesmo objetivando recuperar-se dos efeitos das mesmas;
d) Faltas frequentes e mal explicadas ao consultório tendem a ocorrer.
Hospital:
a) O profissional desaparece durante plantões;
b) A qualidade do desempenho profissional é prejudicada;
c) Prescrições começam a ser feitas sem o devido cuidado;
d) Ações ético-jurídicas por má prática profissional começam a surgir;
e) Demora para responder aos chamados de urgência e/ou intercorrência é notável;
f) Hálito alcoólico pode ser sentido;
g) Picadas/marcas de agulha evidentes em antebraço (ou em outras partes do corpo) podem ser visualizadas;
h) Recusa-se a fazer exame toxicológico, quando solicitado.
Tratamento
Todos aqueles que têm problemas com o uso de substâncias merecem tratamentos médico e psicológico adequados e baseados em evidências de efetividade. Os profissionais da saúde com problemas com o uso de substâncias psicoativas precisam iniciar um tratamento e manter-se nele. Muitas vezes, devido à vergonha e à própria negação do problema, os médicos não procuram ajuda adequada e tentam retardar ao máximo esta busca.
Os seus familiares e mesmo os seus colegas de trabalho cientes do problema devem incentivar o profissional de saúde usuário de substâncias a tratar-se. Entre os colegas de trabalho, jamais um “pacto de silêncio” deve ser recomendado. O profissional com problemas precisa cessar o consumo de substâncias, não fazendo isso apenas por ele mesmo, mas também para os seus pacientes, familiares, amigos etc.
Os conselhos de classe usualmente tendem a recomendar tratamento especializado para médicos dependentes químicos. Ter uma doença crônica jamais deve ser encarado de forma vergonhosa; deixar de procurar tratamento, destruindo o que resta da própria saúde e ameaçando a segurança e o bem-estar alheio não é recomendável.
As fórmulas dos tratamentos médicos e psicológicos variarão, dependendo da gravidade do quadro, dos tipos de substâncias abusadas, da motivação do profissional de saúde usuário de substâncias para o tratamento, da adesão às regras de modificação comportamental e de prevenção de recaídas, da presença de outros transtornos mentais e físicos coexistentes, da própria personalidade do paciente, dentre outros itens. Evitar todo e qualquer “gatilho” para o uso de substâncias deverá ser um dos principais denominadores comuns para o sucesso do tratamento.
Abstinência e recaídas
Aqui, ainda é importante notar que as taxas de manutenção da abstinência entre médicos sob tratamento adequado têm sido reportadas altas e em torno de 74 a 90%, similarmente ao que ocorre entre pilotos de aeronaves. Estas altas taxas podem ser devidas à motivação para manter a licença de trabalho, continuando a prática profissional. No entanto, ao longo de 10 anos, as taxas de recaídas são inquietantes e em torno de 25%. O risco de recaída parece ser maior entre aqueles profissionais da saúde com história familiar de dependência química e portadores de outro transtorno psiquiátrico, como depressão e ansiedade. Infelizmente, no contexto da recaída com opioides, o desenlace tende a ser trágico. Autores têm apontado que cerca de 16% dos médicos residentes de uma determinada especialidade médica que tiveram recaída com opioides acabaram morrendo.
Dito isso, o reconhecimento do problema do abuso de substâncias tanto entre profissionais da saúde quanto na população geral deve ser rápido. Da mesma maneira, a busca por tratamentos individualizados e baseados em evidências científicas de efetividade deve ser prioridade entre aqueles que portam o problema.
Abaixo, aponto interessante referência para leitura:
Berge, K. H., Seppala, M. D., & Schipper, A. M. (2009). Chemical dependency and the physician. Mayo Clinic proceedings. 84, 625–631.