Meu filho morreu de overdose de cocaína

Usar quantidades elevadas de cocaína de uma só vez, ato conhecido como overdose, pode ser fatal. A cocaína é a droga que mais leva o usuário ao pronto-socorro. Saiba o que fazer em caso de overdose.

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“Meu filho foi viciado em cocaína dos 18 aos 46 anos. Durante todos esses anos, sempre alternando internações com períodos de abstinência fora da clínica, inclusive longos, e recaídas. Ele chegou algumas vezes a roubar dinheiro para comprar a droga. Guardava um bom dinheiro em casa, que sumiu, perguntei se ele havia pegado o dinheiro e ele me disse que não… disso tivemos uma grande discussão… e ele saiu e foi para a casa da namorada. Mas nessa saída, ele cheirou muita cocaína, que foi encontrada espalhada no carro, na roupa dele… ele foi internado e dois dias depois morreu. Agora dois meses após a sua morte, achei o dinheiro que ele negou ter roubado… eu havia me confundido onde havia guardado o dinheiro, estou acabada!!! Se essa discussão não tivesse ocorrido… ele não teria saído de casa e não teria cheirado, já que creio… não tenho certeza, estava há seis meses sem usar. Preciso muito de ajuda para poder lidar com tudo isso… dói muito e estou sofrendo demais!!! Obrigada”

Resposta: Usar quantidades elevadas de cocaína de uma só vez, ato conhecido como overdose, pode ser fatal. Dentre todas as drogas ilícitas, a cocaína é a que mais leva o usuário de sustâncias psicoativas a buscar um pronto-socorro. Cerca de 14.000 mortes por overdose de cocaína ocorreram no ano de 2017 nos Estados Unidos da América.

Overdose de cocaína

A dose letal mediana (conhecida como DL50) de cocaína, que se refere à dose letal esperada para 50% dos usuários, é de 96 mg para 1 kg de peso.

Embora a maioria dos estudos sobre doses letais de cocaína tenha sido feita em camundongos, com base no DL50 de cocaína, estima-se que 50% dos indivíduos que pesam 68 kg experimentarão uma dose letal com cerca de 6,5 gramas de cocaína pura. Apesar dessa estimativa, existem múltiplas variáveis que influenciam essa métrica, tais como a idade do usuário, a saúde cardiovascular, a tolerância à droga, o método de consumo, o uso concomitante de outras substâncias, dentre outras variáveis.

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As mortes por cocaína são mais comumente causadas por:

a) Infarto do miocárdio (Infarto Apical tem sido bastante descrito)
b) Acidente Vascular Cerebral
c) Convulsões generalizadas reentrantes

Enquanto a cocaína aumenta a liberação de vários neurotransmissores no cérebro, tais como a dopamina e a norepinefrina, gerando efeitos eufóricos e aumentando a sensação de autoconfiança e inquietação psicomotora, também apresenta efeitos sobre o sistema cardiovascular e sobre vários outros sistemas orgânicos.

Efeitos mais perigosos da overdose de cocaína

Os efeitos cardiovasculares são, de longe, os mais arriscados.

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Estes efeitos cardiovasculares pelo uso da cocaína incluem:

a) Constrição dos vasos sanguíneos
b) Frequência cardíaca rápida ou irregular
c) Aumento da pressão arterial

Tais efeitos da cocaína sobre o coração aumentam a demanda por oxigênio. No entanto, quando os vasos sanguíneos estão contraídos, o sangue menos oxigenado fica disponível para suprir o músculo cardíaco. Um “ataque cardíaco” ocorre quando não há oxigênio suficiente para atingir o músculo cardíaco.

O risco de um efeito deletério cardíaco é cerca de 23 vezes maior durante ou logo após o uso da cocaína em comparação com os não usuários desta substância psicoativa. A cocaína tem sido chamada de “a droga perfeita para provocar disfunções cardíacas” devido aos vários mecanismos centrais e periféricos que ela provoca.

Idosos e portadores de qualquer doença cardiovascular são, naturalmente, mais suscetíveis aos efeitos negativos da cocaína. No entanto, os jovens e aqueles sem fatores de risco podem também sofrer um episódio cardíaco devido ao uso de cocaína.

Apesar dos famigerados e preocupantes efeitos cardíacos causados pelo uso da cocaína, as mortes relacionadas ao consumo desta substância podem ocorrer por disfunções em outros órgãos. A cocaína pode causar acidentes vasculares cerebrais fatais, provavelmente associados com o efeito trombofílico da droga.

Outrossim, a cocaína também reduz o limiar convulsivo, o que significa que pode tornar crises convulsivas possíveis, mesmo que o usuário nunca tenha experimentado uma crise convulsiva antes.

A intoxicação e a overdose por cocaína são consequências alarmantes. A intoxicação ocorre quando a pessoa se sente “alta”, mas, ao mesmo tempo, percebe que a respiração, a frequência cardíaca, a dificuldade para articular palavras etc estão prejudicadas. A overdose é a intoxicação extremada e pode ser mortal.

Sinais de overdose de cocaína

a) Dor no peito
b) Batimentos cardíacos rápidos ou irregulares
c) Alta temperatura corporal ou transpiração intensa
d) Cor azulada da pele
e) Dificuldade para respirar

Overdose de cocaína: é preciso buscar com rapidez o pronto-socorro

A overdose sempre é um quadro de emergência médica!!! Portanto, uma equipe médica de emergência (Pronto-Socorro) deve ser procurada com rapidez.

O que fazer em caso de overdose de cocaína?

Caso o usuário de cocaína esteja apresentando estes sintomas, ele mesmo (se for possível) ou pessoas próximas a ele devem:

a) Telefonar para o serviço de emergência
b) Reunir informações para fornecer aos socorristas, incluindo idade, condições preexistentes, alergias às drogas e medicamentos, uso de drogas/álcool e a quantidade de cocaína consumida
c) Deitar a pessoa de lado para evitar aspiração
d) Se a pessoa se sentir superaquecida, tente manter a temperatura corporal baixa com compressas frias
e) Mantenha o indivíduo em um ambiente seguro, longe de qualquer coisa que possa machucá-lo em caso de convulsão, como objetos com pontas afiadas
f) Ficar com a pessoa até a chegada dos socorristas

Bom, após discorrer sobre os problemas físicos danosos imediatos pelo uso da cocaína, vale a pena notar que os usuários recorrentes ou crônicos desta substância podem apresentar lesões em vários sistemas orgânicos, o que os predispõem à morte súbita ou mesmo à redução dos anos de vida.

No Sistema Cardiovascular, por exemplo, a constrição consistente dos vasos sanguíneos reduz recorrentemente a quantidade de oxigênio para o cérebro, o que pode gerar danos cerebrais persistentes. Outrossim, o uso recorrente e/ou crônico da droga aumenta o risco de aneurismas devido aos danos nas paredes vasculares que alimentam o cérebro. Danos cerebrais adicionais estão citados aqui:

a) Mini-infartos cerebrais
b) Atrofia cerebral
c) Vasculite cerebral ou inflamação dos vasos sanguíneos no cérebro e/ou coluna vertebral
d) Alterações no funcionamento do córtex pré-frontal e do lobo temporal, o que prejudica a resolução de problemas, a tomada de decisões, a compreensão espacial, o vocabulário, a atenção, o aprendizado e a memória
e) Alterações na produção e na absorção de neurotransmissores, que podem levar a transtornos de humor
f) Alterações no movimento, causando tremores, fraqueza muscular, alterações na marcha.

Logo, usuários de cocaína não sofrem danos físicos apenas durante o uso da substância. Os usuários recorrentes sofrem danos provocados pela droga também quando não mais estão fazendo uso de cocaína. Tendo em vista este fato, o tratamento dos usuários deve ser continuado e realizado por equipe interdisciplinar, incluindo sempre médico psiquiatra especializado e médico clínico.

Com o fluxo sanguíneo reduzido em todo o corpo, vários sistemas orgânicos podem ser danificados indiretamente ao longo do tempo, incluindo o estômago e os intestinos.

Efeitos colaterais do abuso de cocaína

Os efeitos colaterais de curto prazo do abuso de cocaína incluem dor de estômago, redução do apetite, náusea, vômito e constipação; com o tempo, esses efeitos colaterais tornar-se-ão permanentes, indicando isquemia intestinal ou morte de tecidos importantes no sistema gastrointestinal.

Pessoas que abusam de cocaína podem ter sérios problemas digestivos

As pessoas que lutam contra o abuso de cocaína (mas continuam usando) também são mais propensas a ter úlceras gástricas devido às alterações na acidez do estômago. Além disso, o abuso de cocaína pode levar ao desenvolvimento de colite isquêmica, que é a inflamação e lesão do intestino grosso; isso pode causar sérios problemas digestivos.

Outras consequências danosas do uso recorrente da cocaína

a) Fígado: O abuso de cocaína significa maior risco de overdose, e a overdose de cocaína pode levar a lesões no fígado, pois o corpo é inundado com toxinas que o fígado não consegue filtrar. Embora a maioria dos danos ao fígado se resolva caso a pessoa se recupere da overdose ou receba ajuda para debelar o uso de cocaína, há casos de morte devido aos danos agudos no fígado. A lesão hepática crônica é menos provável, a menos que a pessoa tenha abusado de cocaína e álcool, o que pode fazer com que o fígado produza cocaetileno, substância que danifica o fígado
b) Rins: O abuso de cocaína pode danificar os rins de duas maneiras. Primeiro, a pressão arterial permanentemente aumentada leva a danos nos rins devido à perda de fluxo sanguíneo. Enquanto muitos sistemas orgânicos são danificados pela falta de oxigênio e pressão alta, os rins são especialmente suscetíveis. Em segundo lugar, o abuso prolongado de cocaína causa rabdomiólise (destruição dos músculos esqueléticos); à medida que esses músculos são danificados, as toxinas são liberadas no corpo e inundam o fígado e os rins. A insuficiência renal é um resultado tardio do dramático quadro de rabdomiólise.

E as consequências não param por aqui… Estas descrições servem para mostrar que o abuso de cocaína, o seu uso recorrente e crônico, os episódios de intoxicação geram problemas agudos e crônicos para o usuário.

Como refletir sobre a perda de um filho por overdose

Seu filho era um usuário recorrente de quantidades altas da substância. Uma das características usualmente notada entre dependentes de substâncias, é a mentira: mente-se sobre o uso, sobre a quantidade da droga usada e sobre o tipo da droga, sobre o sumiço de itens de casa (que foram trocados por drogas) etc. Infelizmente, a mentira faz parte do quadro e deve ser manejada por equipe especializada de forma eficaz.

É uma pena que o seu filho não conseguiu uma adesão a um tratamento adequado. Todavia, dado o uso crônico e recorrente de vastas quantidades da droga, seguramente muitos danos em diferentes sistemas orgânicos já estavam em andamento. Uma consequência mais infeliz era presumida, tendo ele saído de casa ou permanecido nela. Não há como julgar isso.
Tenha forças e siga em frente!!!

Atenção!
Esta resposta (texto) não substitui uma consulta ou acompanhamento de um médico psiquiatra e não se caracteriza como sendo um atendimento.

Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Professor de Psiquiatria do Centro Universitário Faculdade de Medicina do ABC. Pesquisador nas áreas de Dependências Químicas, Transtornos da Sexualidade e Clínica Forense.