por Valéria Meirelles
No Brasil, a família adquiriu valor institucional, tal a importância que ocupa no cotidiano, mesmo com sua multiplicidade de formas: tradicional, de segunda união, homossexuais, unipessoais (um só membro), sem filhos, entre outras.
Segundo o sociólogo Roberto Da Matta, para o brasileiro, a família é também um valor, "(…) pertencer bem ou mal a uma 'família' é mais significativo do que ter um elo com pessoas ou instituições". Ou seja, quem não tem família pode ser digno de pena, e quem a despreza, de antipatia. Essa idéia é tão forte e enraizada em nossa cultura que mal percebemos o uso coloquial da palavra "família" para designar acolhimento, pertencimento, filiação: "pousada familiar", "cheiro caseiro", "comida caseira", "fulano é como se fosse de minha família".
Portanto, a família tem uma conotação tão importante que acaba definindo parte da identidade do indivíduo, sua história, forma de inserção e reconhecimento social. Uma família cresce e se solidifica com o aumento de seus membros, seja por casamento ou também por nascimentos. Se a família for "completa", tradicional, sem divórcios e com filhos, revela-se uma forma de sucesso ou superioridade social de seus membros, digna de admiração e respeito, mesmo que velados.
Diante dessa realidade, quando uma mulher faz a livre opção de não ter filhos, ela vai contra essa ordem social e muitas vezes, não é compreendida e passa a ser até hostilizada. Isso porque a escolha de não ter filhos é vista como um comportamento egoísta e não como mais uma possibilidade na vida da mulher, que acaba sofrendo preconceitos.
No mundo todo há uma tendência de casais optarem por não terem filhos, e essa escolha parte principalmente da mulher, como demonstram estudos que começam a existir sobre o tema. Elizabeth Badinter escreveu o clássico livro: "Um amor conquistado: o mito do amor materno" – muito recomendável – que mostra como a maternidade, além de um instinto da biologia, é também uma construção social e, portanto, é uma das inúmeras possibilidades na vida da mulher. Principalmente da mulher atual.
Nos Estados Unidos, Canadá e Europa, já existem associações de pessoas sem filhos que se unem para apoio, trocas de experiências e lazer – esses grupos possuem sites, como por exemplo: www.worldchildfree.org e www.nokidding.net.
No Brasil, ainda há poucos profissionais voltados a pesquisas sobre o tema. Para Bonini-Vieira, psicóloga do Rio de Janeiro, autora de uma dissertação sobre mulheres que não são mães, "(…) a maternidade está, no imaginário social, intrinsecamente ligada ao feminismo e existem pressões sociais para que as mulheres cumpram o papel reprodutivo, que lhes é 'essencial à sua completude', segundo as normas sociais.".
Mansur, psicóloga paulista também pesquisadora do assunto e autora do excelente livro: Sem filhos: a mulher singular no plural atesta que "(…) o ser humano, diferente dos outros animais, é mais consciente de suas opções e possibilidades de reprodução. Essa diferença torna aceitável que o amor materno, como todo sentimento humano, pode ser incerto, frágil, imperfeito e que a mulher tenha a liberdade de não ter filhos. (…) a mulher que não aceita a pressão psicológica pró-maternalista, é quase sempre considerada desviante, incompleta, inadequada ou vivendo uma vida inferior". Ou seja, o que leva uma mulher decidir que a maternidade não será exercida por ela, é uma combinação de fatores que refletem a sua história, a interação entre medo e desejo, capacidades e limitações, personalidade e circunstâncias socioculturais.
Tanto na prática clínica como nas pesquisas acima, as mulheres que voluntariamente optaram por não serem mães têm um perfil parecido: são economicamente independentes, ativas, muito envolvidas e satisfeitas com a profissão. Possuem ampla rede de amizades, são afetivas e privilegiam relacionamentos baseados em interesses comuns. Exercem inúmeras atividades – ou papéis – revelando multiplicidade de interesses e criatividade para viverem outros tipos de realidade, também satisfatórios. Sentem-se produtivas em outras áreas da vida, que não a familiar/materna. Em geral, são boas cuidadoras de si mesmas e privilegiam a qualidade de vida.
Segundo Bonini Vieira, essas mulheres possuem "uma percepção de si mesmas como pessoas produtivas e realizadas, dentro de suas próprias expectativas, independente de sua escolha reprodutiva". E possuem também angústias, pois são mulheres, não porque são mulheres sem filhos.
É importante estar claro que a não maternidade por escolha é mais uma conquista feminina e mais um fenômeno dos tempos atuais. E como tantos outros, deve ser compreendido desmistificando-se o amor materno, aceitando-se a multiplicidade da vida das mulheres que têm a maternidade como mais uma opção para suas vidas. Ser mulher não é obrigatoriamente sinônimo de ser mãe.