Diferente de outros países, no Brasil há uma grande discussão sobre o que devemos fazer diante da epidemia provocada pelo Covid 19. Apesar das recomendações da Organização Mundial de Saúde e dos procedimentos adotados nos países que foram afetados antes que nós pelo vírus, por aqui ainda se discute acerca dos danos econômicos que uma quarentena poderia provocar. Essa discussão acerca do comportamento a ser adotado pode nos dizer muito sobre o Brasil.
Vivemos em um mundo técnico forjado pela ampliação do domínio humano sobre o restante da natureza. Para que a técnica se amplie, é necessário que se amplie também o conhecimento acerca do funcionamento do mundo natural. Só assim podemos intervir no seu curso promovendo as finalidades humanas que nos interessam. A técnica é uma forma de fazer valer nossos objetivos em um mundo que não os possui originalmente. Assim, podemos controlar os resultados. Isso requer, portanto, a expansão constante do conhecimento para aprimorar essas nossas intervenções.
O resultado da ampliação constante do conhecimento com o propósito de expandir nosso domínio da natureza é a especialização. Para cada área do conhecimento há especialistas, para cada pequeno detalhe do funcionamento do mundo natural existe uma forma de conhecimento muito particular que já possui alguma tradição de investigação. Assim, nossas ideias corriqueiras sobre qualquer coisa – aquelas que temos sem nos determos em estudar cada aspecto dos problemas que nos cercam – terminam sendo sempre superficiais quando comparados com a profusão de conhecimentos técnicos disponíveis.
De certa forma, isso cria uma hierarquia entre a ciência e o senso comum. Tudo o que julgamos saber de um ponto de vista empírico imediato é superficial diante dos conhecimentos técnicos disponíveis. Por isso, vivemos em uma cultura em que recorremos à consulta de técnicos para qualquer coisa. Seus pontos de vista são reconhecidos como superiores em função de serem produzidos por meio dos procedimentos científicos, aqueles que forjaram o mundo da técnica e do conforto em que vivemos.
Por que há tanta resistência para adotar o padrão de comportamento recomendado pela técnica médica?
A questão que parece intrigante, então, é por que no Brasil há tanta resistência para reconhecermos e adotarmos o padrão de comportamento recomendado pela técnica médica. Não me refiro apenas ao Presidente da República que possui um claro interesse político em não prejudicar a economia e, assim, não contrariar seus principais aliados. Me refiro à parte da população que aparentemente se rebela contra a opinião dos técnicos em saúde que têm recomendado insistentemente a adoção de alguma forma de isolamento social.
Resistência cultural
Parece-me que há nessa postura de alguns brasileiros uma forma de resistência cultural. Por meio da desconsideração das recomendações técnicas se promove a possibilidade de nos mantermos no domínio da capacidade de forjar nossa própria realidade. Quando obedecemos aos técnicos, estamos aceitando que a realidade é o que eles dizem que ela é. Quando dizemos que os fatos apontados como significativos pela ciência são apenas opiniões, tão boas quanto quaisquer outras, estamos dizendo que nós também ainda podemos dizer o que a realidade é. Com isso, nos mantemos no controle da realidade em que habitamos. Por isso fabulamos.
Quando falamos que cloroquina cura, que chá de limão cura, que o Covid é parte de um plano chinês para dominar o mundo, que esse vírus não mata, que afinal temos que adquirir imunidade e que alguns morrerão mesmo pois o mundo é assim, com tudo isso o que realmente estamos dizendo é que nós queremos nos manter no controle da realidade em que vivemos.
Para um cientista, essa atitude é somente a manifestação da ignorância causada pela nossos péssimos padrões educacionais. Porém, mais importante que isso, essa postura voltada para a fabulação equivale a uma determinação de viver em um mundo em que nossa intervenção ainda significa alguma coisa. Afinal, trata-se de garantir que o significado do mundo em que vivemos ainda é algo em que cada um de nós pode intervir.
A possibilidade de fabular em um mundo técnico é cada vez menor. O espaço de participação significativa que podemos ter em um mundo inteiramente controlado é mínimo. A possibilidade de fabular nos permite a percepção de que o que pensamos e sentimos ainda é relevante. Não estou afirmando que é certo fabular – muito menos que é errado. Trata-se de perceber o motivo pelo qual a divergência com relação aos procedimentos recomendados pela ciência é um pedido de socorro em um mundo desumanizado.