Por Patrícia Gebrim
Ouça. Somos todos imperfeitos, irmãos em nossas vulnerabilidades. Todos possuímos, em nosso íntimo, partes sombrias, medos, raivas, mágoas, ressentimentos, que afloram de vez em quando. Não há uma única pessoa neste planeta que esteja acima dessa verdade.
Às vezes ferimos as pessoas. Outras vezes somos nós os feridos. Tudo isso faz parte desse jogo chamado vida, do aprendizado que todos estamos experienciando por aqui.
Talvez já tenha acontecido com você, de alguém lhe ter feito algo que você não consiga perdoar. Quando isso ocorre, feito refém, você fica atrelado àquele acontecimento, aprisionado em seus pensamentos. A mente fica girando em falso, como se uma engrenagem tivesse se quebrado e não consegue seguir adiante. Nesse estado, percebemos a nós mesmos revirando essas mesmas sombrias lembranças, repassando as mesmas cenas do passado em nossa tela mental, de novo, de novo e de novo. É exaustivo e assustador.
Somos todos prisioneiros, quando a mente assume o controle. Repetição infinita. É isso que chamam de inferno. E o inferno mora dentro de nós.
O que é preciso para nos libertar dessa tortura?
Perdoar. A palavra emerge de meu coração, suave, sutil, mal a ouço entre tantos pensamentos.
Para nos tornarmos capazes de perdoar, a primeira coisa que precisamos compreender é que, o que quer que tenhamos vivenciado, continha em seu ventre uma lição a ser aprendida. Não era algo entre nós e a outra pessoa. Era entre nós e a nossa própria alma. Não somos vítimas. Não se trata de encontrar culpados, e sim de identificar e integrar o aprendizado. Só assim podemos seguir em frente.
Mas como perdoarmos de fato alguém que nos tenha ferido? Como vencer essa parte pequena de nós que se agarra fortemente àquilo que tanto nos fez mal? Não sente ela um certo prazer nesse apego?
Como entregar esses sentimentos que parecem nos manter vivos? Como atravessar essa sedutora correnteza? Como chegar à paz? O mal e o bem estão abraçados dentro de cada um de nós. Não somos puro amor. Precisamos nos dar conta do mal, dessa parte em nós que existe em oposição ao amor. Dar-nos conta de que algo em nós nos mantêm agarrados a mágoas, julgamentos e dor.
O perdão não pode vir de dentro dessa parte negativa de nosso próprio Eu.
O mal é a parte em nós que não quer perdoar. Jamais seremos capazes de perdoar alguém enquanto não perdoarmos a nós mesmos. Enquanto não aprendermos a curar a nossa escuridão. A mesma sombra que existe no outro, grita em nossas entranhas neste exato momento.
_ Não é uma expressão do mal que nos habita manter o outro aprisionado no lugar do carrasco, deixá-lo sofrer, fazer com que se sinta culpado?
Ao nos darmos conta disso, ao reconhecer o quanto somos também capazes de desejar o sofrimento do outro, ao perceber que “não perdoar” é também uma espécie de vingança, atravessamos o véu de separatividade.
Eu e o outro somos um.
Entenda, para perdoar você não precisa esquecer. Apenas precisa deixar de ser constantemente sugado por esse sentimento ruim que já não existe mais. Você sabe que perdoou quando já não existe dor. Apenas uma lembrança do ocorrido.
Creio que foi Aristóteles quem disse que “a coragem é a primeira qualidade humana, pois garante todas as outras.”
Como enfrentar a escuridão, seja a nossa, seja a de outros, sem coragem? Como perdoar?
As sombras que carregamos têm um objetivo luminoso. Existem para nos ajudar a crescer. É fácil amar a luz. Mas é preciso de coragem e força para amar a sombra. Falta de coragem é falta de amor. É esquecimento de quem de verdade somos. É cegueira. Quando somos suficientemente corajosos para deixar de lado o lugar de vítimas e passamos a caminhar pela vida, de peito aberto, confiantes de que tudo está acontecendo exatamente como deveria acontecer, algo incrivelmente profundo começa a nos ocorrer.
Ganhamos uma clareza que passa a guiar cada um de nossos passos. Aceitamos o caminho, seja ele como for, e já não estamos tão interessados em chegar a algum lugar específico, pois todos os lugares se tornam o melhor lugar. Toda experiência pode ser integrada e aceita sem julgamento.
A vida precisa criar atrito às vezes. É assim que a luz de um diamante finalmente emerge daquela rocha que, aparentemente, não tinha valor algum.
Tudo que é vivido conscientemente leva à evolução. Saber disso nos dá uma coragem imensa. Uma coragem que nos torna maiores do que o passado, do que a dor, do que o medo. Essa coragem é como uma luz que se acende e dissolve tudo o que limitava a plena e livre expressão de nossos corações. Uma coragem que nos ajuda
a ter a certeza absoluta de que somos capazes de conduzir nossas próprias vidas para além do medíocre e limitado papel de simples vítimas.
Não somos vítimas. Somos criadores!
Só os corajosos são capazes de chegar ao perdão.
Tenho me sentido constantemente duas. Uma em mim, a antiga, continua imersa nas ilusões de minha história pessoal e tende a reagir como sempre. Mas eis que existe essa outra, que caminha pela vida como faria um recém-nascido tateando o mundo em que vivemos. E essa outra é assustadora às vezes, vê e sente tudo diferente, se importa menos com coisas que parecem importar muito aos outros, se importa mais com coisas que o mundo nem parece perceber. Essa outra pega a primeira no colo, e nesse colo, cheio de uma mansidão silenciosa, derretem-se as crenças, as lembranças, os desejos. Só resta uma presença sem nome e sem forma. Calam-se as palavras e tudo se torna esse silêncio pleno de significado. E nesse abraço cabe não só a outra de mim, mas também todos os outros… As pessoas, os animais, os rios, as florestas. Somos um."
Extraído do livro de Patrícia Gebrim “Deixe a Selva para os leões – Inspirações para bem viver nos dias de hoje” – para ler capítulo anterior – clique aqui.